Advocacia em saúde como conduto ao espaço público de deliberação e exercício do poder

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

Resumo: Perfaz-se um caminho de compreensão do conceito de advocacia em saúde que procura situar o contexto de sua análise no âmbito dos processos de construção e desconstrução do espaço público. Considera-se que a noção de poder disseminado, em contraposição a de poder institucionalizado, é fundamental para que se compreenda que há um tipo específico e indesejável de dispersão social do poder, a comprometer valores fundamentais para democracia, como a ideia de legitimidade política mediante o estabelecimento de diálogos sociais fundados na pluralidade, e que a advocacia em saúde, por definição, propõe-se a concentrar esse feixe disperso de poderes e encaminhá-los ao espaço público, propiciando o diálogo político necessário à legitimação das políticas públicas de saúde.


Palavras-chave: Direito à saúde, direitos do paciente, participação comunitária, políticas públicas, formulação de políticas.


Abstract: The path of health advocacy understanding is presented from a framework of analysis which is situated under the ambit of construction and deconstruction of public space. The widespread notion of power, as opposed to institutionalized power, is considered crucial to understand that there is a undesirable specific type of social dispersal of power, undermining core values for democracy as the idea of political legitimacy through the establishment of social dialogues based on plurality and the health advocacy, by definition, proposes to concentrate the scattered powers factors and direct them to public space, providing the necessary political dialogue to the legitimation of public health policies.


Keywords: Right to health, patient rights, community participation, public policies, policymaking.


Penso que o conceito de advocacia em saúde deva ser apreendido na ambiência do debate sobre a construção do espaço público[1], precisamente, nos capítulos em que se discutem os processos de degenerescência e de resgate dessa dimensão.


Como o domínio que envolve esse debate é o das relações de poder, o cálculo dessa pertinencialidade com o tema da construção da dimensão pública implica também o reconhecimento de que relações de força e situações de poder[2] permeiam, igualmente, o itinerário de compreensão do conceito de advocacia em saúde.


Por conta disso, o sentido da expressão resiste às abordagens que abstraiam o amplo contexto em que ela se insere. Fora do contexto das situações de poder e das relações de força não considero apreensível o conceito de advocacia em saúde.


Por assim reputar indispensável essa contextualização, imagino que seja de bom alvitre esclarecer que pretendo utilizar o termo “poder”, com sentido próximo ao que lhe confere Michel Foulcault: ocorre-me que a ideia de poder mais ajustada à análise a que nos propomos é a que faz possível pensar a advocacia em saúde, a partir das relações entre as suas práticas e os fatores de poder[3].


A predileção pelas ideias de Foulcault de que o poder político capilariza-se e dissemina-se pela sociedade contraria ou, ao menos, relativiza a noção de “poder institucionalizado”; e explica por que expressões utilizadas por ele, como “relações de força” e “situações de poder”, aparecerão repetidas vezes no texto, substituindo o termo “Poder”.


Parece-me que essa maneira de conduzir o pensamento constitui pressuposto de compreensão do problema que proponho, quando mais não fosse, pela circunstância de que essa noção de poder disperso e disseminado atende bem ao propósito de enlaçar a prática jurídica às práticas e aos instrumentos da advocacia em saúde. É que o momento desse enlace é, justamente, aquele em que se reconhece que a prática jurídica pode pretender e a advocacia em saúde, por definição, pretende articular focos de poder dispersos e desorganizados, realocando-os no espaço público, no palco de exercício da cidadania ativa, a elidir o sentido devastador do esvaziamento do espaço público e do recolhimento à esfera privada.


Na obra intitulada “Em defesa da sociedade” Michel Foulcault fala sobre cinco “precauções de método”, quando se põe sob análise a questão do poder. De acordo com o autor: (i) o estudo do poder não deve se prender às suas “formas regulamentadas e legítimas” (a análise deve privilegiar as “extremidades”, as manifestações capilarizadas[4], em detrimento dos centros de poder); (ii) a questão que pergunta por “quem tem o poder afinal[5]?” não deve servir de guia de interpretação do objeto sob análise (importa verificar, isto sim, como ocorrem os “procedimentos de sujeição”, “os processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos”; (iii) o estudo não deve estar focado na interpretação do poder como um “fenômeno de dominação em massa”[6], de indivíduos, grupos ou classes, uns sobre os outros, mas como algo “que circula”, como algo que funciona em rede”; (iv) o poder precisa ser visto de baixo para cima, da periferia para o centro, examinando-se, de forma “ascendente”, “como, nos níveis mais baixos, os fenômenos, as técnicas, os procedimentos de poder atuam” [7]; (v) o exame desse problema, para Foulcault, prescinde da noção de ideologia – a produção, a circulação, a disseminação de saberes é que explica o exercício ascendente do poder, não a ideologia.


Sobre situar essa compreensão do poder, na base dos argumentos que pretendo desenvolver, devo alertar para um aparente desvio de minha parte.  Embora a dispersão seja, em Foulcault, essencial à própria definição de poder, isto é, embora a ideia de descentralização, a rigor, seja imanente ao conceito de poder, considero que haja espécies e graus de dispersão indesejáveis e inconciliáveis com o processo de amadurecimento democrático.


Evidente que a adesão ao pensamento de Foulcault e o estabelecimento de uma ressalva desse tipo tende a despertar certa perplexidade, que se justifica: se a dispersão e a disseminação são, para ele, inerentes ao conceito de poder, isso parece significar que, quaisquer que sejam as formas institucionais do poder, haverá sempre pontos de irradiação localizados, tanto nos centros, como nas zonas periféricas. É dizer, as contingências econômico sociais e a variabilidade de regimes políticos não interfeririam no dado fundamental sobre o poder, qual seja, a circunstância de que a sua exteriorização se dá, a partir de vários níveis, a partir de várias instâncias. Se concordo com isso, que sentido há em estabelecer uma tal reserva que pareça desnaturar o próprio conceito? Dito de outro modo, se afirmo que há graus indesejáveis de dispersão e, se digo que debelá-los pode abrir um iter para o fortalecimento da democracia, não estaria me contradizendo? Penso que essa questão esteja de fato a refletir uma aparente aporia e que, por isso, mereça certos cuidados.


Preocupam-me certos tipos e graus de dispersão de poder, num aspecto  específico, que irei esclarecer. Primeiramente, devo dizer que a advocacia em saúde precisa ser vista como um importante fator de poder. Para além disso, ela deve ser enxergada como fator e como movimento de reordenação de forças, como processo intencional de reordenar, de recombinar e de remodelar estruturas de poder ineptas, para que novas formas de poder, revigoradas, assumam sua função sistêmica, exteriorizando as parcelas de poder que lhes são inerentes.


Vistas as coisas desse modo, o fato de que determinados tipos e graus de dispersão de poder pareçam-me indesejáveis não implica uma contradição com as “precauções de método” de Foulcault. Não há contradição porque não afirmo que seja possível erradicar a capilarização do poder, embora considere factível e conveniente remodelar certos tipos de dispersão. Em que pese o fato de que a natureza reordenadora da advocacia em saúde possa erradicar certas dispersões indesejáveis, processos bem sucedidos de advocacia em saúde tendem a criar novas estruturas de poder, ainda caracterizadas pela descentralização e distanciamento dos centros (no mais das vezes), todavia, com um qualificativo da máxima importância, a aptidão para vocalizar anseios sociais em prol do aprimoramento democrático.


Da capitulação da discussão sobre a constituição do espaço público, sua emergência e degenerescência, assomam algumas condições de compreensão do conceito de advocacia em saúde. A primeira corresponde à ideia de que a república é o marco jurídico e temporal que (re) estabelece a retórica política pautada na divisão entre a dimensão pública e a privada. A segunda corresponde à consideração de que há um clamor social, pela reocupação do espaço público. Igualmente, da noção de que o debate sobre a divisão entre o público e o privado se insere no contexto do embate entre os fatores de poder assoma uma terceira e essencial condição de compreensão do conceito, qual seja, a admissão de que a advocacia em saúde ostenta a natureza de fonte do direito.


Entretanto, é preciso que se enxergue a constituição do espaço público e o anseio social pela sua ocupação, enquanto produto da trajetória política do nosso país e não como algo imune às nossas idiossincrasias ou como algo divorciado das nossas origens e da nossa história. Em que pese a identidade de instrumentos e a assimilação do modus operandi da health advocacy – de origem norte-americana, – a transposição dessa realidade limita-se a isso, precisamente, aos instrumentos e às ferramentas, não sendo o caso de se considerar a possibilidade de uma transposição de essência, que aceda ao núcleo do conceito, impregnado pelas singularidades históricas da nossa organização política.


A forte coloração política do conceito de advocacia em saúde enfraquece toda tentativa de compreensão que abstraia a extravagância de elementos que singularizam o processo de apropriação da esfera pública pela sociedade brasileira, ainda que esse processo seja incipiente, tanto quanto a consciência da nossa capacidade de enfrentamento e de autodeterminação. É necessário que se perceba um processo em curso, uma dialética de construção do interesse público e de inserção do cidadão nesse processo constitutivo.


A proclamação de 15 de novembro de 1889 compromete o Estado, mais com a mera retórica, condicionada pela divisão entre aquilo que é público e aquilo que é privado, do que com a efetiva prática republicana; mais com o discurso do interesse público, do que com o resgate do consenso e da liberdade política. Sobre não fazer parte do nosso projeto republicano, o exercício da cidadania ativa antes se associa ao contínuo movimento da sociedade na direção do espaço público, do que a pretensos efeitos da vitória republicana e da deposição do monarca.


E esse movimento, que também é um tomar de consciência, acerca da nossa capacidade de autodeterminação, aproveita-se do discurso oficial, condicionado pela retórica do interesse público, para protagonizar episódios cada vez mais significativos de vocalização de anseios sociais. Evidência de que, a duras penas, algum amadurecimento já nos confere certa capacidade de enfrentamento e de articulação política.


Ainda sobre a necessidade de se considerar a trajetória histórica e política do país, há que se estabelecer o elo entre a exigência republicana de se preservar a retórica do interesse público e a gradual assimilação do princípio democrático, desde o fim da ditadura militar e, notadamente, a partir da promulgação da Constituição de 1988.


A democracia – com corte deliberado de significado -, é o regime político no qual os direitos deixam de ser a benesse do governante, em favor dos governados, e passam a ser uma criação da própria sociedade, em seu favor. Só é possível instalar o aparato do regime democrático sobre uma estrutura republicana madura, que tenha condições de recepcionar a sociedade, no espaço de deliberação e exercício do poder. Nesse aspecto, a constituição de uma dimensão pública pede a deposição de toda espécie de autoritarismo. Não é suficiente que se derrote o despotismo político. A criação e a manutenção do espaço público requerem esforços permanentes de erradicação da tirania cultural e dos processos de hierarquização social, elementos não conciliáveis com a ideia de Estado Democrático.


Apesar da ascendente preocupação com a dimensão pública, ainda encontramos fortes barreiras sociais e culturais, para a realização da democracia e, por conseguinte, para o exercício da cidadania ativa. Portanto, como produto da trajetória da nossa sociedade, a advocacia em saúde deve ser considerada e compreendida, como um esforço crescente de alocação de fatores de poder e de organização de forças políticas de vocalização da vontade social.


Se o contexto que define os contornos do conceito de advocacia em saúde é o das relações entre a esfera pública e a privada, tanto mais acertado é dizer que discrepantes processos de institucionalização do regime republicano e de assimilação do princípio democrático e, portanto, discrepantes maneiras de se estabelecerem relações entre as dimensões pública e privada exerçam influência significativa no desenho do conceito ou, mais que isso, determinem a própria existência da advocacia em saúde.


Não é por outro motivo que os Estados Unidos da América maturam o conceito de advocacy, desde que as treze colônias declararam-se independentes. Lá, onde a república é contemporânea do Estado, a separação entre o público e o privado não esperou por proclamações. Não é por outro motivo também que os esboços do que viria a ser a advocacia em saúde no Brasil aparecem apenas na passagem do século XIX para o século XX, com o então incipiente movimento da reforma sanitária.


Já disse que uma terceira condição de compreensão do conceito é o reconhecimento de que a advocacia em saúde constitui uma das fontes do direito. A assertiva poderia escandalizar os discursos cientificistas, profundamente vinculados a um modelo de teorização do direito que privilegia a produção técnica do saber, o esquadrinhamento de conceitos, a racionalidade formal do fazer jurídico, o isolamento de toda historicidade, a revelação do direito posto.


Uma breve digressão no terreno da epistemologia sublinharia o tipo de respaldo que a teoria do conhecimento oferece à tese do direito construído pela ação política dos atores sociais. Na oportunidade, entretanto, creio que essa incursão não seria suficientemente rigorosa e comprometeria a objetividade do artigo, motivo pelo qual relego a explanação a uma nota de rodapé[8].


O essencial é que firmo a opção pela ideia de um direito cujo sentido não se esconde entre as palavras da lei, nem espera que se lhe revelem o sentido e o alcance. Tenho por acertada essa predileção ou, corrigindo-me, afirmo essa ideia não como uma preferência, senão como o ponto de partida para a compreensão de todo o Direito.


 A advocacia em saúde, como fonte do direito positivo, expressa a constatação de que o processo legislativo e a interpretação da Lei podem ser conformados pela intervenção de atores sociais. É dizer, o sentido da Lei é mais o significado construído pelo embate de fatores de poder e menos um pretenso sentido necessário e universal, afugentado entre as palavras.


Considerando esclarecidos os pressupostos e as condições que julgo necessários para a compreensão da advocacia em saúde, num esforço que não quer, evidentemente, anunciar uma definição acabada, livre de críticas e interpolações, parece-me que seu conceito deva ser enunciado desta forma:


Advocacia em saúde é a prática democrática que consiste em agregar fatores de poder, historicamente ou, circunstancialmente, dispersos na sociedade, para conduzi-los ao espaço público, estimulando a vocalização de um discurso político fundado no consenso, com o objetivo de intervir na condução de políticas sanitárias e na construção legislativa e judicial de direitos sociais concernentes à saúde.


Num primeiro plano, a definição proposta deixa transparecer que a advocacia em saúde integra a âmbito da vida prática, como uma agir intencionado, endereçado a um finalidade preconcebida, a um objetivo. É uma praxis, portanto. Devemos perceber que a prática a que a definição se refere não se qualifica pela tecnicidade, pela cientificidade, nem pelo profissionalismo. Daí o interesse em se insistir na completa ausência de identificação entre advocacia, enquanto atividade própria e reservada do advogado e a advocacia em saúde, enquanto prática de cidadania ativa. Não quero dizer com isso que a advocacia em saúde prescinda da ciência, da teorização e da técnica, pelo contrário, uma multiplicidade de saberes e de tecnologias conformam suas ferramentas, sem contudo comporem sua essência.


A circunstância de que essa prática se estabeleça e, apenas se estabeleça, sob a égide de regimes democráticos, denota que a liberdade de ação na esfera pública é nota essencial do conceito, intrinsecamente relacionada com a capacidade de autodeterminação dos cidadãos e com a erradicação da violência e da apropriação do espaço público pelo privado. A ideia de que a advocacia em saúde intervenha na realidade para conformá-la pressupõe a existência de um espaço público pluralista de acolhimento, a que corresponde a efetivação dos princípios republicano e democrático, e a instalação de foros públicos de diálogo, a exemplo das audiências públicas que vêm antecedendo o julgamento das causas de maior repercussão pelo Supremo Tribunal Federal e da admissão da assistência de atores sociais, juridicamente interessados, como intervenientes na condição de amicus curiae[9].


É precisamente a exigência democrática desta presença plúrima, nos espaços políticos de deliberação, que associam o conceito de advocacia em saúde à ideia de congregação de fatores de poder dispersos e condução deles ao espaço público. Chamo a atenção para o fato de que essa agregação de fatores de poder nada tem de inconciliável com a noção foulcaltiana de poder, pois que, como já assinalado, os processos de ajuntamento incidem sobre dispersões indesejadas, determinadas por circunstâncias históricas adversas. No caso brasileiro, emblematicamente, podemos mencionar como  processo indesejável de desagregação aquele que se instalou durante a ditadura militar, período intensamente marcado pelo recolhimento ao espaço privado e pela impossibilidade de expressão pública de anseios sociais.


Esta mutilação, que a história recente do Brasil viu esfacelar a dimensão pública, operou-se a partir de um aparato de alienação fundado no medo, a que correspondeu um enorme déficit de politização, de cujos efeitos nefastos a sociedade brasileira ainda se ressente. Reconstruir esse espaço público demanda esforços significativos de agregação e de recondução de forças políticas, o que apenas se mostra viável, a partir da instauração de um compromisso público com a educação para a cidadania e com a retomada da consciência política.


Há que se aspirar também pela possibilidade de que a multiplicidade de interesses possa superar o risco do dissenso[10] e construir discursos políticos coesos, aptos a impactar a condução das políticas de saúde e a produção legislativa e judicial de direitos concernentes à saúde. Há um déficit democrático nesses domínios e isso é um problema do qual, por definição, advocacia em saúde tem de dar conta.


 


Bibliografia

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e posfácio de Celso Lafer, 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

_________. Origens do totalitarismo – anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo Tavares. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

BERNHARDT, John W. Medieval Concepts of the Past, Ritual, Memory, Historiography. 2ª ed. NW, Washigton, DC: Cambrigde University Press: 2002.

DALLARI, Sueli Gandolfi et al. Advocacia em saúde no Brasil contemporâneo. Rev. Saúde Pública [online]. 1996, vol.30, n.6. pp. 592-601.

LASSALE, Ferdinand. O Que é uma Constituição?. Belo Horizonte: Líder, 2004.

FOULCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOULCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975 – 1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KANT, Immanuel. Crítca da razão pura. Os Pensadores. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Mossburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

Notas:

[1] Espaço público assume no texto o sentido que Hannah Arendt lhe confere na obra ”A Condição Humana”.  Em Arendt, a ação, enquanto atividade humana relacionada aquilo que é público, tem como condição a participação política. Das dimensões da vita activa, a ação é a única que se desenvolve no espaço público, as outras dimensões, o trabalho e o labor, pertencem ao domínio da vida privada.

[2] As expressões “relações de força” e “situações de poder”, ao gosto de Michel Foulcault, são empregadas, recorrentemente, por ele, com o intuito de evitar a utilização do termo “Poder”, que traduz conotação desapegada do seu método de análise. A palavra “Poder” parece sugerir a existência de um núcleo de irradiação de força, um centro de preeminência, o que contraria suas idéias de poder como algo disseminado, para cuja compreensão importa a consideração das periferias do sistema e não dos centros.  Conferir as cinco “precauções de método” de Foulcault, descritas adiante.

[3] Michel Foucault evita o termo “Poder”, preferindo as expressões situações de poder e relações de força: “O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado.(…) Mas se o poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então o único problema é munir−se de princípios de análise que permitam uma analítica das relações do poder ( Microfísica do Poder, Graal, 1993). A expressão “fatores reais de poder” é de Ferdinand Lassale, quando se refere à ideia de que a verdadeira Constituição de um país não é a escrita, a que denomina “folha de papel”, mas os fatores reais de poder que regem a vida social. Utilizo a expressão fatores de poder com o mesmo propósito de Foulcault ao evitar a personificação ou estatização do Poder (com letra maiúscula), levando também em consideração as ideias de Lassale, com a ressalva de que, não apenas a Constituição do Estado me parece corresponder aos fatores reais de poder, mas qualquer espécie de normatização.

[4]  Michel Foulcault, 1999, p. 32.

[5]  Idem, p. 33.

[6]  Idem, p. 34.

[7]  Idem, p. 36.

[8]  Pode-se dizer que toda problemática do conhecimento pressupõe o enfrentamento da relação sujeito-objeto (aquela na qual o sujeito observador se põe diante do objeto observado, com a intenção de apreendê-lo) e de suas possíveis implicações. A essência da teoria do conhecimento é a investigação dessa relação, com a intenção de se estabelecerem critérios de verdade. As soluções que a filosofia propõe para o problema vão, desde a negação peremptória da possibilidade de que o sujeito apreenda o objeto (absoluta impossibilidade do conhecimento), até a afirmação ingênua da inexistência de qualquer dificuldade no estabelecimento dessa relação (absoluta correspondência entre o objeto pensado e o objeto observado). São soluções radicais e muito pouco rigorosas que – como sói acontecer com os radicalismos –  apresentam escassa utilidade. A ideia de que as “coisas” existem independentemente do pensamento foi muito difundida, na antiguidade clássica. Trata-se de uma solução que afirma a possibilidade de apreensão do objeto, uma vez que as “coisas” estão no mundo e os sentidos humanos são capazes de percebê-las da exata maneira como elas se apresentam. Ao contrário, há soluções que consideram que as “coisas”, todas elas, só existem como produto do pensamento. É o pensamento que dá forma e confere realidade ao objeto, sendo impossível imaginá-lo alheio à consciência, na medida em que o pensamento integra o objeto ao conteúdo da própria consciência. Também aqui afirma-se a possibilidade do conhecimento, mas enquanto na solução anterior a realidade do objeto determinava a percepção do sujeito, nessa, é a percepção do sujeito que determina a realidade do objeto. kant subverte o pensamento anterior e apresenta a questão de uma maneira surpreendente. Para ele, as “coisas” existem e possuem uma realidade própria e independente da consciência e do pensamento, entretanto, essa realidade é inatingível. Todo conhecimento produz aparências e toda a realidade que conhecemos não é, senão a aparência do “mundo-em-si” (As expressões mundo-em-si e coisa-em-si são próprias do transcendentalismo kantiano). Kant afirma que há uma realidade, mas nega a possibilidade de que o conhecimento possa reproduzir essa realidade. Não se trata de negar a possibilidade do conhecimento. Para Kant, o conhecimento não revela a realidade (coisa-em-si). Admite-se uma realidade pensada, que subjaz e não pode ser apreendida pelo conhecimento. O mundo das coisas conhecidas é criado por nós, válido para nós e diferente daquilo que, realmente, há. É possível, a partir da tese kantiana, afirmar que a questão da verdade, não é resolvida através da especulação acerca da correspondência entre a coisa-em-si e a percepção da coisa ou do objeto. A questão da verdade coloca-se, a partir do questionamento sobre a possibilidade de que os produtos do conhecimento tenham validade intersubjetiva. Dito de outro modo, importa saber se o pensamento e a consciência são capazes de produzir algo necessário e universal. Necessário porque não poderia ser de modo diverso, ou seja, como produto do conhecimento só pode se apresentar de uma forma específica, nunca de outra e, universal, porque esse mesmo resultado é produzido por todas as outras relações sujeito-objeto, isto é, todos os sujeitos são capazes de apreender o mesmo objeto de maneira idêntica. A questão que se coloca sobre a possibilidade de que o conhecimento reproduza a realidade não se identifica com a questão da possibilidade de que ele produza verdades. Kant não apresenta uma solução para a questão da verdade. A realidade para Kant existe e é inapreensível. O conhecimento cria um mundo de aparências que é aquele em que se vive. Já o saber se essas aparências são sempre idênticas para todos é questão que não se resolve no transcendentalismo kantiano. Essa questão que não é resolvida na epistemologia kantiana ou melhor, que sequer é posta por Kant, chama a atenção de importantes teóricos contemporâneos. Uma contribuição importante, desenvolvida na segunda metade do século XX, por Jürgen Habermas, afirma a necessidade de um deslocamento do paradigma. Em Habermas o conhecimento é entendido como um processo de interação comunicativa e não como um processo individual de apreensão. Ele enxerga a questão da construção da verdade como resultado de um diálogo acerca do objeto. Dentro do universo retórico argumentativo, as aparências particulares interagem, de modo que se faça possível o estabelecimento de uma convenção sobre o objeto. O conhecimento passa a ser um processo de diálogo, tendente a construção de verdades sobre as coisas, sobre a vida e sobre o mundo. A única verdade possível é a verdade dialética. Todas essas teorias sofreram severas críticas. Não há uma solução suficientemente completa, que resolva e supere todas as objeções. Entretanto, todo esse esforço foi fundamental para que se estabelecesse uma certa desconfiança sobre a aptidão do conhecimento, notadamente, sobre a capacidade do pensamento de integrar à consciência uma verdade, enquanto correspondência de mundo. Essa conclusão é cara para o direito contemporâneo, que se vê às voltas com o dilema da interpretação judicial, da crescente produção de conceitos jurídicos indeterminados, da difícil tarefa de se estabelecerem limites entre as funções judicial e legislativa, tendo de dar conta de um grau de complexidade normativa e social inéditos, pródigos em estabelecer a perplexidade, em torno de pensamentos sedimentados e a aporia em domínios antes sumulados, como que a apontar a necessidade de uma visita resignada às bases epistêmicas do pensamento jurídico contemporâneo, para reexaminar-lhe as bases e refundar um estatuto epistemológico de validade, que possa suplantar esse estado de dúvida.

Incapazes de manejar e dominar o real, de definir com singeleza uma ordem subsuntiva entre conceitos – tão ao gosto do formalismo positivista-, parece chegado o momento de refluir o cinismo de um modelo falido de teorização do direito, apático diante de uma ordem implacável de novidades que nos alerta para o tamanho da nossa nova ignorância. A dessacralização da lei não é mais um projeto teórico. A praxis judiciária cumpre as exigências de uma complexidade já instalada, enquanto o pensamento jurídico patológico protesta pela usurpação da função legislativa, ao desamparo de qualquer fundamento epistemológico. A teoria das fontes do Direito é sempre uma doutrina de legitimação de relações de poder. A história nos diz que ela pode e tende a manter a ideologia da ocasião, emprestando legitimidade as relações de força estabelecidas, quaisquer que sejam sua origem e forma de exercício. Para a teoria do poder político teológico, o Direito é criação da própria divindade. O imperador, delegado de Deus, aquele em cuja cabeça infundem-se os pensamentos justos e perfeitos, não se acomete do equívoco, da imprudência, do excesso e do erro (the king can do no wrong). O soberano não erra, por isso, ele não se justifica. A ética medieval compromete-se com a ideia de que a única orientação racional da ação é a difundida pela Igreja Católica, a quem os homens devem obediência. No frontispício do edifício político medieval, a Moral tem lugar proeminente. Do alto do campanário, os homens são frágeis, injustos e imperfeitos, incapazes de conhecer a vontade de Deus e de se deixar guiar pela luz. Resta-lhes, portanto, o acatamento, a submissão à palavra daquele que conhece a vontade de Deus. As leis legítimas são as palavras do monarca, o mandatário de Deus. O Antigo Regime legitima o absolutismo monárquico (nos evangelhos doados, em 1022, por Henrique II, à abadia de Monte Cassino, há uma iluminura de significado político exemplar. No grande círculo central, o imperador assenta-se entre virtudes e divindades.  Os cantos superiores são ocupados por Justitia e Pieta; à esquerda do imperador, em círculos menores, aparecem Sapientia e Prudentia; abaixo, nas laterais, os símbolos do direito, Lex e Ju; sobre a cabeça do imperador, no pequeno círculo, paira a pomba do Espírito Santo a incutir-lhe a razão, a sabedoria divina, a perfeita lei do criador, os fundamentos do pensamento justo e perfeito. A esse respeito, conferir John W Bernhardt, 2003). A política pós-revolucionária (re) cria a experiência do Estado Republicano; o Novo Regime rompe com a ordem anterior. O bom governo passa a ser o consistente, aquele fundado na qualidade de suas instituições: a Lei é instituição mais sólida do Novo Regime. A teoria das fontes do Direito repudia então a ideia de que o direito se assente em outra fonte que não a Lei. Essa ideologia moderna proíbe a interpretação e defende a vontade imanente da Lei com a lâmina da guilhotina. Dessacraliza-se o direito, pela deposição do monarca e sacraliza-se a Lei, perpetuando-se o seu caráter divino, através de uma espécie de “fenomenologia da incidência”, forjada pelo discurso descarado da subsunção do fato à norma, como se essa operação fosse possível no plano físico, como se a qualificação jurídica dos fatos sociais não fosse um encontro de sentidos construído pela consciência, no exercício da aplicação do direito.

[9] Na ADI 2.548/PR, o Ministro  do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, enfrenta essa temática: “Não há dúvida, outrossim, de que a participação de diferentes grupos em processos judiciais de grande significado para toda a sociedade cumpre uma função de integração extremamente relevante no Estado de Direito. Em consonância com esse modelo ora proposto, Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às ‘intervenções de eventuais interessados’, assegurando-se novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição (…). Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos ‘amigos da Corte’. Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição. (…) Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito.”

[10] Jürgem Habermas, 2003, p. 45 – 46.


Informações Sobre o Autor

Paulo João Benevento

Advogado sanitarista. Especialista em Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo. Diretor Jurídico da Rede Feminina de Combate ao Câncer do Estado de São Paulo. Diretor da Rede Feminina de Combate ao Câncer de São Caetano do Sul. Presidente da Comissão de Desenvolvimento de Políticas Públicas para o Combate ao Câncer da 39 subseção da OAB/SP


Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

Conflitividade e Judicialização das Relações Sociais: Uso das Teorias…

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Conflictividad y...
Equipe Âmbito
10 min read

Brasil prepara-se para introduzir legislação sobre apostas esportivas

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Fernando Haddad...
Âmbito Jurídico
2 min read

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *