Aplicação ex oficio da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro

Resumo: O presente trabalho visa analisar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, notadamente à sua aplicação ex officio após a regulamentação da matéria no Novo Código de Processo Civil. Para tanto, observou-se todas as especificidades do tema tratado no ordenamento jurídico brasileiro e as teorias doutrinárias que a circundam. Ademais foi realizada uma análise detida de como o tema está sendo aplicado na atualidade pelo poder judiciário. O método de abordagem utilizado foi o dedutivo, já que teve por base uma análise ampla sobre a aplicação de ofício pelo juiz de referido incidente, no ordenamento jurídico brasileiro. O método de procedimento adotado foi o monográfico e histórico, tendo em vista versar sobre um único assunto e por valer-se de reflexões históricas acerca do tema. A técnica de pesquisa foi a bibliográfica, baseada em revisão de literatura, no intuito de elucidar da melhor forma possível o tema proposto, com respaldo da jurisprudência pátria. Por fim, concluiu-se pela análise de cada caso em concreto para a aplicação da desconsideração, a fim de assegurar o objetivo do incidente, qual seja, coibir o mau uso da personalidade jurídica, mas sem causar insegurança jurídica aos beneficiários da personalização. [1]

Palavras-Chave: Personalidade Jurídica. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Ex offício

Abstract: This study aims to analyze the incident of disregard of legal personality, especially its ex-officio application after the regulation of the matter in the new code of civil procedure. It has observed, all the specificities of the theme dealt with in the brazilian legal and the doctrinal theories that surround it.  Addition, a detailed analysis was held up  of how the theme is currently  applied by the judiciary. The method of approach used was the deductive one, since it was based on a wide analysis about official application by the judge of said incident, in the brazilian legal order. The method of procedure adopted was the monographic and historical, with a view to dealing with a single subject and to draw on historical reflections on the subject. The research technique was the bibliographical one, based on literature review, in order to elucidate the proposed theme in the best possible way, with support from the jurisprudence of the nation. Finally, it was concluded by analyzing each specific case for the application of the disregard, in order to ensure the objective of the incident, namely, to curb the misuse of legal personality, but without causing legal uncertainty to the beneficiaries of personalization.

Key words: legal personality. Disregard of legal personality. Ex officio

Sumário: Introdução. 1 Surgimento e evolução histórica da desconsideração da personalidade jurídica. 1.1 Consequências oriundas da desconsideração da personalidade jurídica 2 Pressupostos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2.1 Noções gerais. 2.2 Teoria maior (art. 50 CC, art. 28 CDC caput). 2.2.1 Teoria maior subjetiva. 2.2.2 Teoria maior objetiva. 2.3 Teoria menor (art. 28, § 5º CDC). 3. Regulamentação sobre a matéria no Código de Processo civil de 2015 e na Consolidação das Leis do Trabalho (pós-reforma). Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O homem passou muito tempo da história com receio de fazer investimentos na atividade comercial em virtude de ausência de proteção do seu patrimônio. Nesta época, quando se ingressava no meio comercial, o indivíduo se responsabilizava integralmente com o seu patrimônio, o que ocasionava lentidão no desenvolvimento econômico.

A fim de sanar tais inseguranças, surge a personalização das pessoas jurídicas, trazendo grandes benesses oriundas dos seus efeitos, proporcionando um avanço nas atividades comerciais advindo de grandes investimentos econômicos, já que o indivíduo não mais se sentia vulnerável ao adentrar em tais práticas mercantis.

Devido a esta grande segurança trazida pela personalização, a personalidade jurídica passou a ser mal utilizada, passando a ser, muitas vezes, uma ferramenta para prejudicar terceiros, havendo que se estabelecer uma medida para coibir tais abusos, surgindo, neste contexto, a desconsideração da personalidade jurídica.

Já aplicada há muitos anos, a desconsideração da personalidade jurídica carecia de uma regulamentação procedimental para sua aplicação, sendo empregada somente com base em requisitos materiais. Com grande êxito, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), inaugurou as regras procedimentais para a aplicação do incidente. No entanto, o regramento específico para a utilização da desconsideração, ensejou uma série de controvérsias no que tange a sua aplicação, sendo uma delas a sua aplicação ex officio pelo juiz.

Nesse diapasão, cabe analisar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica após a vigência do CPC/2015, notadamente, no que concerne à sua aplicação de ofício pelo juiz.

O presente trabalho abordará o surgimento da desconsideração da personalidade jurídica como meio de coibir o mau uso da personalização, bem como as consequências da aplicação deste incidente.

Posteriormente, trará à baila os requisitos a serem observados para a aplicação da desconsideração, explorando as teorias que circundam este tema e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Na oportunidade, será analisada a regulamentação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no CPC/2015, adentrando nas especificidades das controvérsias de sua aplicação de ofício pelo juiz após a vigência do CPC/2015.

Por fim, será objeto de estudo as inovações da reforma trabalhista no âmbito da desconsideração da personalidade jurídica.

1 – Surgimento e evolução histórica da desconsideração da personalidade jurídica

No século XIX, no bojo da revolução industrial, surge a preocupação de se conter o uso abusivo da personalidade jurídica. É que, naquela época, houve uma grande popularização das grandes empresas, notadamente, em virtude da personificação que, por depender apenas dos requisitos impostos pelo ordenamento jurídico de seu país de constituição, passou a ser utilizada de forma frequente para cometer abusos e prejudicar terceiros, surgindo, neste contexto, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

A teoria da desconsideração tem origem no common Law e,surge no direito norte-americano, embora, assim, trazido por poucas doutrinas. Como preleciona o autor Edilson Enedino das Chagas: “O caso Bank of United States v. Deveaux, em 1809, serviu de referência para a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, ao firmar a competência da justiça federal, em hipótese em que preponderou não o domicílio da companhia demandada, e sim os dos diferentes sócios que compunham seu quadro societário. Da mesma maneira que as controvérsias entre cidadãos de diferentes Estados deveriam ser julgados por tribunais federais, nos termos do art. 3º, da Constituição norte-americana, a presença de sócios com domicílio em mais de um Estado atraiu a competência federal (CHAGAS, p. 326, 2016).”

Nota-se que, a Suprema Corte dos Estados Unidos, trata como pólo passivo da demanda os sócios e não a pessoa jurídica Deveaux. O Juiz Marshall, membro desta corte, ao proferir tal decisão, abriu margens à relativização da autonomia patrimonial, servindo tal decisão, de ponta-pé inaugural para a aplicação, naquele país, da teoria da desconsideração.

Neste ínterim, surge nos Estados Unidos a doutrina da disregard oh the legal entity, que, em que pese ter sofrido várias críticas baseadas na segurança jurídica, ganhou uma notoriedade considerável ao longo do século XX.

Pode-se considerar que, o marco da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em todo o mundo, se deu, na Inglaterra, com o caso Salomon v. Salomon. Aaron Salomon constituiu uma sociedade e, para preencher exigências da legislação inglesa no que concerne ao quadro societário, inclui como sócios da referida empresa, sua esposa e seus quatro filhos. Para a constituição, Salomon cedeu o seu fundo de comércio à sociedade, recebendo, por consequência ações representativas de sua contribuição, tornando-o credor da sua própria empresa e ainda, com garantia real.

O grande problema surge quando, o passivo da empresa supera o ativo. Neste cenário, um dos liquidantes, buscou a satisfação dos seus créditos, alegando em sua petição, dentre outros fundamentos, a fraude empreendida por Aaron Salomon na constituição da sociedade, uma vez que este seria o único acionista da empresa.

Tornou-se notório que, Salomon, objetivava proteger o seu patrimônio através da personalização, fazendo com que o seu crédito prevalecesse em detrimento aos demais credores.

O juízo de primeira instância e a corte inglesa manifestou-se favoravelmente ao liquidante, entendendo que o crédito privilegiado em favor de Salomon não deveria prevalecer, pois sua empresa continuava sendo uma firma individual, sendo ele o único acionista. A corte condenou o comerciante Salomon a pagar os credores com os seus bens pessoais.

Embora tal decisão tenha sido reformada pela instância superior, o caso de Salomon difundiu, em todo o mundo a teoria da desconsideração, marcada pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, quando constatado o abuso no uso da personalidade jurídica.

A teoria da desconsideração vinha sendo amplamente explorada pela doutrina e jurisprudência, no entanto, não havia, ainda, sido sistematizada por um ordenamento jurídico de qualquer país. Tal sistematização se deu na Alemanha, tendo como responsável o estudioso Rolf Serick, que buscou consolidar os entendimentos das decisões judiciais a respeito desta teoria.

Uma das mais saudosas preocupações de Rolf Serick, que se estende até os dias atuais, foi a cautela na relativização do uso da desconsideração, a fim de que, não fosse aplicada de forma exacerbada, ocasionando, uma negação à pessoa jurídica.

Serick entendia que, não poderia ser uma fundamentação qualquer, capaz de afastar a personalidade do ente coletivo. Para ele, na aplicação de tal instituto, devia-se aplicar como fundamento a ponderação de interesses e a cláusula geral de boa-fé.

Rolf Serick em muito influenciou o legislador brasileiro, notadamente quanto à preocupação em estabelecer requisitos seguros para o afastamento da personalidade jurídica, devendo-se preservar a segurança jurídica oriunda da personalização dos entes coletivos. No entanto, ainda há críticas quanto a certos requisitos autorizadores desta teoria em nosso país, que, conforme se verá no decorrer do presente trabalho, são interpretados como frágeis e não justificáveis para a aplicação da teoria da desconsideração.

O responsável por difundir esta teoria no Brasil foi o jurista Rubens Requião, que mesmo antes da sua sistematização no ordenamento jurídico brasileiro, já defendia sua aplicação pelos juízes.

Em uma conferência denominada de “DisregardDoctrineAbuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica”, Requião explanou a necessidade de se flexibilizar a autonomia patrimonial para responsabilizar sócios de obrigações contraídas e, escondidas por detrás da pessoa jurídica. Para ele, fazia-se necessária a adoção da doutrina pelo direito brasileiro. Aduzia que, as fraudes e os abusos cometidos através da personalidade jurídica, só seriam combatidos com a aplicação da disregarddoctrine.

Em sua obra, Rubens Requião destaca a importância da doutrina, ao enfatizar que: “O ponto mais curioso da doutrina é que sempre os Tribunais que lhe dão aplicação declaram que não põem dúvida na diferença da personalidade entre a sociedade e os seus sócios, mas no caso específico de que tratam visam a impedir a consumação de fraudes e abusos de direitos cometidos através da personalidade jurídica, como, por exemplo, a transmissão fraudulenta do patrimônio do devedor para o capital de uma pessoa jurídica, para ocasionar prejuízo a terceiros. (REQUIÃO, p. 391, 2005)”

Em seus trabalhos Requião queria deixar claro que a personalidade jurídica não era um direito absoluto, mas ao contrário, poderia ser afastada quando constatado abuso de direito e fraude contra credores.

Vale consignar que, o trabalho de Rubens Requião foi de tamanha importância que serviu de inspiração à Comissão Revisora do Código Civil ao redigir o art. 49 do Antiprojeto. Este artigo previa a dissolução da pessoa jurídica, o que não era previsto na doutrina, por isso passou por algumas adequações propostas pelo próprio Requião e, a partir deste momento foi iniciada a sistematização da teoria da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro.

1.1 Consequências oriundas da desconsideração da personalidade jurídica.   

Ao ser formada a pessoa jurídica, o patrimônio dos sócios e da sociedade não se integralizam. Em virtude do princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, em regra, o patrimônio da sociedade não responde pelas dívidas pessoais do sócio. Contudo, com o mau uso da personalidade jurídica, entendeu-se que este princípio não poderia ser analisado de forma absoluta, sendo admitida a desconsideração da autonomia patrimonial quando verificada fraude no seu uso com o fim de prejudicar credores.

O principal efeito da desconsideração da personalidade jurídica é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial, que faz com que os sócios respondam por obrigações contraídas pela sociedade, mas revestida de abusos e fraudes.

Quando resta configurado o mau uso da proteção patrimonial, a desconsideração da personalidade é a medida que se impõe, “rasgando o véu” da pessoa jurídica e, consequentemente, fazendo com que o patrimônio dos sócios sejam atingidos.

É importante pontuar que, para que seja determinado o afastamento da autonomia patrimonial, devem-se observar vários pressupostos, conforme se verá no próximo capítulo, uma vez que foi este princípio que estimulou as atividades econômicas, levando aos investidores uma segurança quanto à proteção do seu patrimônio.

Fábio Ulhoa preleciona de forma brilhante acerca da importância desta proteção patrimonial oriunda da personalidade jurídica. Veja-se: “Em virtude de sua importância fundamental para a economia capitalista, o princípio da personalização das sociedades empresárias e sua repercussão quanto à limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios não podem ser descartados na disciplina da atividade econômica. Em consequência, a desconsideração deve ter necessariamente natureza excepcional, episódica, e não pode servir ao questionamento da subjetividade própria da sociedade (COELHO, p. 64, 2016).”

Nota-se que, o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica só será cabível em casos excepcionais, quais sejam, quando for utilizada de forma indevida e for notório o abuso deste instituto. Não basta, portanto, que um credor seja impedido de satisfazer seu crédito, faz-se necessário o mau uso da personalidade jurídica.

Vale consignar, que o objetivo da teoria não é despersonalizar a sociedade. Segundo Fábio Ulhoa Coelho: “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas de dele se utilizam (COELHO, p. 64, 2016).”

Portanto, esta teoria não extingue a personificação, apenas a afasta e a torna ineficaz para determinados atos, os quais são praticados com o objetivo de impedir fraudes contra credores e abusos de direito, possibilitando a imputação direta aos sócios por dívidas formalmente imputadas à sociedade.

2. Pressupostos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro

2.1 Noções gerais

A pessoa jurídica, como abordado no capítulo anterior, tem importantíssimo papel para o incentivo do exercício da atividade empresarial no Brasil. Assim, a personalidade jurídica deve ser utilizada de forma lícita, organizada e para atingir propósitos legítimos, devendo se afastar todo tipo de ilegalidade, fraude ou desvio de sua finalidade.

Observa-se que, infelizmente, há casos em que a personalidade jurídica é criada, parcial ou totalmente, para a prática de manobras mercantis/empresariais ilícitas, totalmente desconectadas de sua real função. São nestes casos em que surge a necessidade de se aplicar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, buscando-se afastar o dogma da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus sócios.

De maneira límpida, o professor Marlon Tomazette conceitua a desconsideração da personalidade jurídica com os seguintes dizeres: “A desconsideração da personalidade jurídica é, pois, a forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais ela foi criada, vale dizer, é a forma de limitar e coibir o uso indevido deste privilégio que é a pessoa jurídica, vale dizer, é uma forma de reconhecer a relatividade da personalidade jurídica das sociedades. Este privilégio só se justifica quando a pessoa jurídica é usada adequadamente, o desvio da função faz com que deixe de existir razão para a separação patrimonial (Tomazette, p. 237, 2013).”

Diante de tal conceituação, infere-se que somente será preservado o princípio da autonomia patrimonial e, em consequência, da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus membros, se forem respeitados os requisitos legais e os propósitos e funções legítimas de tal instituto, pois, caso contrário, a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser utilizada para se atingir o resultado justo e esperado, fazendo com que os efeitos das obrigações de uma sociedade possam atingir os sócios responsáveis pela mesma.

No que se refere aos pressupostos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, a Doutora em Direito Comercial pela PUCSP, Wilges Bruscato, assim ensina: “São pressupostos de sua aplicação a existência de mau uso da pessoa jurídica (agora traduzido em desvio da finalidade ou confusão patrimonial, de acordo com o regramento do art. 50 do Código Civil), a ausência de patrimônio social e a autorização judicial para que se entre no patrimônio pessoal dos sócios. Na desconsideração inversa, não se exige a existência de dívidas, mas sim a prática de atos condenados legalmente (BRUSCATO, ps. 218/219, 2011)”

Têm-se, no direito brasileiro, requisitos específicos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica de acordo com cada área ou ramo jurídico. O Código Civi1 (CC/2002), especificamente no artigo 50, assim prevê: “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Destacam-se aqui os pressupostos do desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial, os quais caracterizam o abuso da personalidade jurídica. Para melhor elucidação entre as diferenças e igualdades entre esses dois pressupostos, valem os apontamentos da Doutora Bruscato quanto ao desvio de finalidade: “Na conduta exposta como desvio de finalidade, entrarão os casos em que os sócios obriguem a sociedade em compromissos que não se coadunam com o objeto social, seja em proveito próprio ou para explorar atividade distinta da originalmente prevista no contrato social, sem que a sociedade detenha recursos para tanto (BRUSCATO, p. 220, 2011)”

No que se refere à confusão patrimonial, assim evidencia Bruscato: “Quando a lei traz a confusão patrimonial, abarca os casos em que os sócios – ou, como é mais comum, um deles: o majoritário na sociedade aparente – pagam dívidas sociais com recursos próprios e, vice-versa, efetuam pagamento de despesas pessoais com recursos da sociedade. Mas não só isso: refere-se também, ao uso de bens da sociedade como se fossem bens pessoais, e o contrário também, inclusive em relação a movimentações bancárias (BRUSCATO, p. 220, 2011).”

Portanto, conclui-se que a inadimplência e/ou até a insolvência da sociedade, para o código civil, não são suficientes para ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, sendo necessária a prova de que a situação fatídica se derivou do desvio da finalidade empresarial e/ou confusão patrimonial, para, só então, se autorizar a desconsideração.

Já a lei 8.078/90 – Código de Defesa do consumidor (CDC) – também abordou a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, mas de maneira diversa do Código Civil, como se percebe da própria letra da lei no artigo 28 do referido Código: “Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.[…]§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. (BRASIL, 2002)”

Inicialmente, percebe-se uma grande ampliação quanto ao número de hipóteses que ensejam a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Isso se dá, principalmente, em virtude da própria característica do Direito do Consumidor, que é de assegurar a satisfação dos direitos e proteger os consumidores que, na relação de consumo, são considerados hipossuficientes perante as empresas.

No tocante a cada uma das hipóteses trazidas pelo CDC, o professor Marlon Tomazette faz significante análise de cada uma delas, começando pelo abuso de Direito, que assim é conceituado: “A primeira hipótese de desconsideração, elencada pelo artigo 28 do CDC, é o abuso de direito, que representa o exercício não regular de um direito. A personalidade jurídica é atribuída visando determinada finalidade social: se qualquer ato é praticado em desacordo com tal finalidade, causando prejuízos a outrem, tal ato é abusivo e, por conseguinte, atentatório ao direito, sendo a desconsideração um meio efetivo de repressão a tais práticas (TOMAZETTE, ps. 255/256, 2013).”

Em continuidade, Tomazette explica a hipótese do excesso de poder e, oportunamente, a violação ao contrato social ou ao estatuto, a infração à lei e os fatos ou atos ilícitos da seguinte forma: “[…] o Código refere-se ao excesso de poder, que diz respeito aos administradores que praticam atos para os quais não tem poder. Ora, os poderes dos administradores são definidos pela lei, pelo contrato social ou pelo estatuto, cuja violação também é indicada como hipótese de desconsideração. Assim, podemos reunir em um grupo o excesso de poder, a violação ao contrato social ou ao estatuto, a infração à lei e os fatos ou atos ilícitos (TOMAZETTE, p. 256, 2013).”

As hipóteses acima elencadas, segundo o próprio Tomazette, não correspondem efetivamente à desconsideração, pois se trata de questão de haver imputação pessoal dos sócios ou administradores. Ademais, a inclusão das citadas hipóteses se mostra parcialmente desnecessária uma vez que antes mesmo da publicação do CDC, já havia dispositivos legais para inibir as práticas aqui abordadas, como por exemplo os artigos 10 e 16 do Decreto 3.708/19; artigos 117 e 158 da lei 6.404/76 e o artigo 159 do já revogado Código Civil de 1916.

No tocante às hipóteses da falência, insolvência, encerramento das atividades provocadas por má administração, para efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, complicado se mostra a materialização da prova, pois a definição e conceituação do que viria a ser má administração é definitivamente abstrato e subjetivo o bastante para se complicar consideravelmente a análise dessa hipótese. Para maior entendimento do que seria uma má administração, eis os ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho: “[…] Aqui cogita-se de erros do administrador na condução de negócios sociais. Quando ele desatende às diretrizes fixadas pelas técnicas administrativas, pela chamada “ciência” da administração, deixando de fazer o que elas recomendam ou fazendo o que desaconselham, e disto sobrevêm prejuízos à pessoa jurídica, ele administra mal, e, se ocorrer a falência da sociedade empresária, a insolvência da associação ou fundação ou mesmo o encerramento ou a inatividade de qualquer uma delas em decorrência da má administração, então será possível imputar ao administrador a responsabilidade pelos danos sofridos pelos consumidores”(COELHO, p. 59, 2012).”

Finalizando os pressupostos materiais da desconsideração, o §5º do artigo 28 do diploma em análise, traz a hipótese da aplicação do incidente nos casos em que tal personalidade seja, de alguma forma, empecilho ao ressarcimento dos prejuízos causado aos consumidores. O CDC, neste parágrafo em comento, traz a possibilidade de desconsideração com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica.

Para os críticos deste benefício trazido pelo CDC aos consumidores, trata-se de forma desproporcional de proteger o consumidor quando comparado à fragilidade trazida à pessoa jurídica. È fato que se deve proteger o consumidor, principalmente pela sua característica de hipossuficiência na relação de consumo, mas desproteger de maneira tão brusca a pessoa jurídica pode desestimular de tal forma osempresários e comerciantes, que prejudicaria de maneira extremamente impactante o mercado e as relações comerciais.

Outro ramo jurídico que prevê a desconsideração da personalidade jurídica é o Direito Econômico, através da lei 12.529/2011 (CADE), que assim determina em seu artigo 34: “Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

Observa-se aqui que o Direito Econômico segue a mesma dinâmica do Código de Defesa do Consumidor- caput do artigo 28 -, elencando as mesmas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica nos casos em que se verificarem infrações à ordem econômica, como os cartéis, o preço predatório e demais infrações, como bem explica Tomazette (p. 261, 2013).

Ainda nas áreas do direito que se apoiaram do CDC para a utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, tem-se o Direito Ambiental, através da lei 9.605/1998, que assim prevê: “Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”(BRASIL,98). Como visto, referida lei praticamente reproduziu a letra do § 5º do art. 28 do CDC, alterando somente o pólo passivo da demanda, que neste caso é o meio ambiente.

Outra lei que se apoia nas mesmas diretrizes do art. 28, § 5º do CDC é a lei 9.847/1999, que trata do sistema de distribuição de combustíveis, e assim prevê no seu artigo 18, § 3º: “Art. 18. Os fornecedores e transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor.[…]§ 3o Poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade sempre que esta constituir obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao abastecimento nacional de combustíveis ou ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis. (BRASIL, 1999)”

Importante destaque deve ser dado também quanto à utilização da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) já trazia a possibilidade de desconsideração, pelo menos no entendimento de alguns doutrinadores, no seu artigo 2º, § 2ª: “[…]§ 2º – Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. (BRASIL, 1943).”

Os críticos a esse entendimento explicam que o referido parágrafo não trata de desconsideração da personalidade jurídica, mas sim da hipótese de solidariedade, conforme expõe Tomazette em sua obra: “Ora, não se trata de desconsideração, mas de simples solidariedade, por três motivos: “primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma hipótese que justifique sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque se trata de responsabilidade civil com responsabilização solidária das sociedades pertencentes ao mesmo grupo” (TOMAZETTE, p. 265, 2013).”

Ainda que haja suspeita quanto a utilização da desconsideração da personalidade jurídica pelo direito do trabalho apoiado no §2º do artigo 2º do decreto-lei nº 5.452/1943 (CLT), tais dúvidas caem por terra quando se verifica na jurisprudência trabalhista que, majoritariamente, tem utilizado de forma analógica o CDC, aplicando-se a desconsideração, independentemente da existência de qualquer prova de abuso da personalidade jurídica. Para a aplicação do instituto, o Direito do Trabalho utiliza-se das possibilidades trazidas pelos artigos 8º e 769 da CLT, a fim de preencher as lacunas que por ventura vierem a aparecer. Veja-se tais artigos: “Art. 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Parágrafo único – O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.[…]Art. 769 – Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título. (BRASIL, 1943).”

Para melhor visualização da aplicação da desconsideração no direito trabalhista, válida se faz a citação do julgamento de um agravo de petição proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho 2º Região. Veja-se: “FRAUDE À EXECUÇÃO – MARCO INICIAL – DISTRIBUIÇÃO DA RECLAMAÇÃO TRABALHISTA – IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE SÓCIO. O direito do trabalho adota a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, sendo certo que a mera demonstração de inaptidão financeira é suficiente para atingir o patrimônio do sócio. Inteligência do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990). Nessa esteira, o marco para consideração da fraude, na alienação patrimonial tanto de bens da empresa quanto dos sócios, é a distribuição da reclamação trabalhista. Ocorrida a cessão do patrimônio depois da propositura da ação pelo empregado, resta evidenciada a fraude à execução. Recurso a que se dá provimento. (BRASIL, 2015) (grifo não original)[2]

Infere-se da citada jurisprudência que é pacificado o entendimento de que o Direito do Trabalho se preocupa em proteger e assegurar os direitos ao trabalhador hipossuficiente, trazendo assim considerável insegurança jurídica e patrimonial para o empregador, uma vez que, a prova de insuficiência financeira da pessoa jurídica pode ser capaz de ensejar a desconsideração, com a consequente afetação do patrimônio do sócio. Percebe-se que, crítica que sofre o § 5º do CDC é incidente aqui no Direito do Trabalho.

Noutro giro, tratando-se de mais uma lei do ordenamento jurídico brasileiro que versa acerca da desconsideração, têm-se a recente lei 12.846/2013, que, observando-se o recente cenário jurídico-político do Brasil no que se refere aos crimes praticados contra administração pública, trouxe a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, conforme prevê o art. 14: “Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.”

Verifica-se aqui mais uma vez a hipótese do abuso de direito ensejando a desconsideração da personalidade jurídica, bem como a confusão patrimonial, hipóteses estas já trazidas e abordadas neste trabalho quando da explicação do art. 50 do Código Civil de 2002.

Por fim, oportuno se faz citar o Direito Tributário que, para alguns doutrinadores, também se aplicaria o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, através das hipóteses trazidas pelos artigos 116, 124 e 134 da lei nº 5.172/1966, Código Tributário Nacional (CTN). Na contramão deste entendimento está a importante conclusão de Marlon Tomazette sobre o tema: “Nossas conclusões, respeitadas as opiniões em sentido contrário, não encontram nenhum dispositivo legal autorizador da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito tributário, ressalvado o art. 116, parágrafo único, ainda não aplicável.[…]a desconsideração é uma forma de conter os abusos no uso da personalidade jurídica, para qualquer obrigação. Não se pode permitir o abuso desse importante instrumento, que é a personalidade jurídica. Assim, é certo que a desconsideração pode sim ser invocada no âmbito do direito tributário, para responsabilizar os sócios ou administradores pelas obrigações tributárias da pessoa jurídica[…] (TOMAZETTE, p. 269, 2013).”

Por conseguinte, conclui-se que a desconsideração da personalidade jurídica é aplicada a diversas áreas do direito de maneiras diversas. No entanto, ao verificar os requisitos de aplicação do incidente em cada lei, observa-se que, ou seguirá o artigo 50 do Código Civil, ou será tendente ao § 5º do artigo 28 do CDC, enquadrando-se na Teoria Maior ou na Teoria Menor, respectivamente, a qual serão analisadas a seguir.

2.2. Teoria maior (art. 50 CC, art. 28 CDC caput)

 

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, regra geral do ordenamento jurídico brasileiro, é adepta a uma aplicação mais cautelosa deste incidente, devendo-se afastar o princípio da autonomia patrimonial somente em casos excepcionais, uma vez que, aplicação deste incidente de forma desregrada acarretaria na extinção da pessoa jurídica.

É positivada no artigo 50 do Código Civil, bem como no artigo 28, caputdo Código de Defesa do Consumidor, já explanados no tópico anterior.

Referida teoria entende que, não basta que a pessoa jurídica descumpra uma obrigação para que seja desconsiderada sua personalidade jurídica, fazendo-se necessário que este descumprimento seja oriundo do desvirtuamento de sua função ou confusão patrimonial.

Assim, já se posicionou o 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo: “percalços econômicos financeiros da empresa, tão comuns na atualidade, mesmo que decorrentes da incapacidade administrativa se seus gerentes, não se consubstanciam por si sós, em comportamento ilícito e desvio de finalidade da entidade jurídica. Do contrário, seria banir completamente o instituto da pessoa jurídica.”(apud TOMAZETTE, p. 244, 2013)”

Da mesma forma já se posicionou o Tribunal de Justiça do Paraná, no sentido de que, insuficiência do passivo da pessoa jurídica não pode ser considerada o único requisito ensejador da desconsideração da personalidade jurídica. É o que se extrai: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO MONITORIA CONVERTIDA EM EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL.PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE FRAUDE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. MERO INADIMPLEMENTO DA SOCIEDADE DEVEDORA QUE NÃO AUTORIZA RESPONSABILIZAR OS INTEGRANTES DE SEU QUADRO SOCIAL PELO CUMPRIMENTO DE SUAS OBRIGAÇÕES. 1. Apenas a insolvência da pessoa jurídica, nesse sentido considerada sua incapacidade de, com recursos e bens próprios, arcar com seus compromissos financeiros, não é suficiente para ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, já que não se amolda às hipóteses previstas no artigo 50, do Código Civil, que adota a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. (BRASIL, 2013) (grifo não original)[3]

Portanto, para a Teoria Maior existem outros requisitos que devem ser observados para a aplicação do incidente, havendo duas vertentes quanto a esta peculiaridade, o que fez com que doutrinadores criassem a subdivisão desta teoria em Subjetiva e Objetiva.

2.2.1 Teoria maior subjetiva

A vertente subjetiva da teoria maior entende que para a aplicação da desconsideração deve-se observar como requisito o desvio de função da pessoa jurídica que é identificada na fraude e no abuso de direito da autonomia patrimonial.

Entende-se por fraude, a manipulação da verdade a fim de prejudicar terceiros. No contexto do presente trabalho, a pessoa jurídica utiliza a autonomia patrimonial de forma ilícita para se esquivar ao cumprimento de obrigações diante do credor.

A título de exemplo, Fábio Ulhoa menciona o contrato de trespasse que, na maioria das vezes é acompanhado de uma cláusula de não restabelecimento. A fraude neste caso poderá ocorrer se, caso haja referida cláusula, o alienante criar uma nova pessoa jurídica, a fim de não obedecer a não concorrência e, assim, prejudicar o adquirente.

É importante consignar que, para a incidência da desconsideração da personalidade jurídica, não basta apenas que exista a fraude, mas que ela tenha nexo com o uso da pessoa jurídica, ou seja, que guarde relação com a autonomia patrimonial.

De outro modo, no abuso de direito, não há que se falar em ato ilícito, mas em desvio na finalidade social. Ocorre que, quando se usa um direito ele deve satisfazer direitos individuais, mas sem prejudicar os sociais.

Em suma, o abuso de direito se resume no mau uso da personalidade jurídica, não existindo aqui o interesse primordial de prejudicar terceiros, o que não significa que isso não poderá ocorrer, caso a personalidade jurídica seja utilizada de forma não conveniente.

A doutrina traz como exemplo de mau uso da personalidade jurídica a subcapitalização, ocorrida quando o sócio, ao invés de aplicar recurso na sociedade a fim de cumprir com o seu objeto social, transfere para si todo ele, não horando o requisito para se obter a autonomia patrimonial, qual seja, a adequada capitalização da sociedade.

Vale consignar que, os casos de subcapitalização devem ser analisados caso a caso, para se aferir se de fato houve ou não um abuso de direito, acarretando o desvio de finalidade.

2.2.2 Teoria Maior Objetiva

A vertente objetiva acredita que o requisito a ser observado para a aplicação do incidente é a confusão patrimonial, que é deflagrada quando o patrimônio da pessoa jurídica é misturado ao patrimônio dos sócios. No entanto, embora seja um fundamento legal para se requerer a desconsideração, muitos doutrinadores entendem não ser suficiente, a depender do caso concreto, uma vez que, pode existir hipótese de uma confusão patrimonial, mas sem que haja um desvio na função da pessoa jurídica.

Fato é que, os requisitos da Teoria Maior, objetivos e subjetivos, são corriqueiramente utilizados para a análise do cabimento ou não da desconsideração. É o que recentemente aplicou o Superior Tribunal de Justiça. Veja-se: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/73. INEXISTÊNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 50 DO CC/2002. APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. TRIBUNAL DE ORIGEM QUE AFIRMA A EXISTÊNCIA DE DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Não se verifica a alegada violação ao art. 535 do CPC/73, na medida em que a eg. Corte de origem dirimiu, fundamentadamente, a questão que lhe foi submetida, não sendo possível confundir julgamento desfavorável, como no caso, com negativa de prestação jurisdicional, ou ausência de fundamentação. 2. No caso, em que se trata de relações jurídicas de natureza civil-empresarial, o legislador pátrio, no art. 50 do CC de 2002, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige a demonstração da ocorrência de elemento objetivo relativo a qualquer um dos requisitos previstos na norma, caracterizadores de abuso da personalidade jurídica, como excesso de mandato, demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas). 3. O Tribunal de origem, com base nos elementos fático-probatórios constantes nos autos, consignou que a sociedade empresária atingida pela desconsideração encontra-se inativa e que seus bens são utilizados para fins particulares dos sócios. Rever a conclusão a que chegou o acórdão recorrido importaria o reexame de provas, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7 do STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (BRASIL, 2017) (grifo não original)[4]

Seja utilizando aspectos da vertente subjetiva ou da vertente objetiva, dentre os ramos do direito brasileiro que utilizam a desconsideração da personalidade jurídica, são adeptos a Teoria Maior, O Código Civil (10.406/02), O caput, do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (8.078/90), a lei de Direito Econômico (12.529/11), a Lei de atos praticados contra a administração pública (12.846/13) e o Código Tributário Nacional.

2.3 Teoria Menor (art. 28, § 5º CDC)

A Teoria Menor, respaldada pelo § 5º do artigo 28 do CDC, preleciona que, a mera insolvência da pessoa jurídica pode justificar a desconsideração, quando for óbice ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos consumidores.

A mencionada Teoria se originou quando da crise da pessoa jurídica que começou a ser utilizada para fraudar credores e justificar a sua aplicação na vulnerabilidade do consumidor.

Outros ramos do direito utilizam por analogia a Teoria Menor instituída pelo CDC, tais como o Direito do Trabalho que entende ser o trabalhador tão vulnerável quanto o consumidor, como também o direito ambiental que objetivou proteger o meio ambiente de danos sofridos e impossibilitados de serem reparados devido a utilização fraudatória da personalidade jurídica.

Na aplicação da teoria em comento, o risco da atividade econômica é totalmente transferido para o sócio ou administrador, de forma que, estes irão responder com o seu patrimônio pelos atos da sociedade, independentemente da incidência de fraude.

Muitas críticas têm sido apresentadas quanto ao posicionamento da Teoria Menor, uma vez que a autonomia patrimonial pode ser facilmente rechaçada, trazendo uma grande insegurança aos investidores da atividade econômica, no entanto, é plenamente utilizada e confirmada pelos Tribunais. Nesse sentido: “Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º. – Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum. –[…] – A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. – Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. – A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. – Recursos especiais não conhecidos. (BRASIL, 2004) (grifo não original)[5].”

As leis que seguem os requisitos da Teoria Menor para a aplicação da desconsideração são, o Código de Defesa do Consumidor (8.078/90), especificamente em seu § 5º do artigo 28, A lei que rege o Direito do Trabalho (CLT – 5.452/43), a Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) e a Lei que rege o sistema de distribuição de combustível (9.847/99)

3. Regulamentação sobre a matéria no Código de Processo civil de 2015 e na Consolidação das Leis do Trabalho (pós-reforma)

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica já vem há muito tempo sendo seguramente aplicado por vários ramos do direito brasileiro, no entanto, tal incidente carecia de uma regulamentação jurídica, o que veio a ocorrer com a vigência do Código de Processo Civil Lei 13.105/15, que no capítulo IV do seu diploma trouxe o “incidente de desconsideração da personalidade jurídica, explorados do artigo 133 ao 137.

Embora ainda existam controvérsias acerca do tema, notadamente quanto a sua aplicação de ofício pelo juiz – tema a ser tratado no próximo tópico – as novas regras procedimentais do referido incidente sanou várias polêmicas, tais como, sua natureza jurídica, o direito ao contraditório, a via recursal, e a proteção do credor diante das fraudes de execução, tudo isso bem delineado e definido no CPC/2015.

De fato, com o novo diploma processualista, a controvérsia a respeito da natureza jurídica da desconsideração da personalidade jurídica rechaçou a dúvida de ser, ou um incidente processual ou uma ação autônoma. Mesmo antes da regulamentação, o Superior Tribunal de Justiça já havia se posicionado no sentido de que, conseguindo o credor provar de forma incidental a necessidade de “rasgar o véu” da sociedade, afastando sua autonomia patrimonial, desnecessário seria a propositura de uma ação autônoma.

Daniel Amorim Assumpção Neves, justifica sabiamente o posicionamento que o Tribunal Superior já vinha adotando mesmo antes de se definir a desconsideração como um incidente processual, acreditando ter este posicionamento influenciado o legislador quanto a classificação desta natureza jurídica. Veja-se: “É compreensível que o entendimento consagrado no Superior Tribunal de Justiça esteja fundado nos princípios da celeridade e da economia processual, até porque exigir um processo de conhecimento para se chegar à desconsideração da personalidade jurídica atrasaria de forma significativa a satisfação do direito, além de ser claramente um caminho mais complexo que um mero incidente processual na própria execução ou falência (NEVES, p. 308, 2016).”

É importante consignar neste ponto, que, ao requerer a desconsideração da personalidade jurídica, deve ser observado no pedido os requisitos previstos em lei, é o que preceitua o § 1º do artigo 133 do CPC/2015. Ao trazer esta observação no diploma, o legislador quis frisar que os requisitos para a propositura do incidente são matérias de direito material, não sendo, desta forma, amparados pelo CPC/2015. O § 4º do artigo 134 do novo estatuto em comento, esclarece, inclusive, que tais pressupostos devem ser demonstrados no requerimento do incidente. No entanto, esta demonstração exigida na Lei não se trata de prova pré-constituída que deve, obrigatoriamente ser alegada a fim de se obter um sucesso na aplicação do incidente, mas, tão somente, uma alegação de que existem requisitos legais ensejadores da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Prosseguindo nas inovações, o novo estatuto, além de definir o procedimento legal para a desconsideração clássica, que é a tratada no presente trabalho, positivou uma outra modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, que só a título de conhecimento, denomina-se de “inversa”.

Noutro giro, dúvidas também pairavam quanto ao momento oportuno do cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, definindo o artigo 134 do novo códex em comento que, o incidente será oportuno em todas as fases do processo de conhecimento, bem como no cumprimento de sentença e na fase de execução. Neste sentido, o autor Daniel Amorim Assumpção Neves, aduz que: “ao admitir expressamente a desconsideração da personalidade jurídica na execução – processo e cumprimento de sentença – o legislador deixa clara a viabilidade de se incluir no polo passivo e responsabilizar patrimonialmente os sócios mesmo que esses não façam parte do título executivo exequendo (NEVES, p. 309, 2016).”

No que tange às dúvidas que existiam em relação ao direito do contraditório na instauração do incidente, o artigo 135 do diploma em apreço definiu que, a pessoa jurídica ou o sócio será citado, quando da elaboração do incidente, a fim de se manifestar e pleitear as provas que acharem cabíveis, isso, dentro do prazo de 15 dias.

A doutrina majoritária já se posicionava nesse sentido, no entanto, nos Tribunais Superiores ainda não era pacífica tal controvérsia, sendo já proferida decisões diversas acerca do assunto, ora era declarada a nulidade da decisão que concedia a desconsideração sem observância do contraditório, ora admitia-se ser plenamente possível o contraditório postergado.

Em que pese já se ter definido na legislação que deve haver o contraditório na instauração do incidente, parte da doutrina entende que, não se pode afastar a possibilidade do contraditório diferido, pois, caso haja requisitos para uma antecipação dos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica ou até mesmo para a tutela de urgência, poderia ser corretamente decidido sobre o incidente antes mesmo da citação do sócio ou da pessoa jurídica.

Nesse sentido Superior Tribunal de Justiça já decidiu: “RECURSO ESPECIAL Nº 1.444.960 – MG (2014/0068127-9) RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO. […] RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CPC/73. CITAÇÃO. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES. LIMITE DA RESPONSABILIDADE. INEXISTÊNCIA. 1."A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade"(REsp 1.414.997/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe de 26/10/2015) […] (BRASIL, 2016) (grifo não original)[6]

Em obediência ao princípio do contraditório, todos os meios de prova em direito serão admitidos e, em que pese já se ter demonstrado a possibilidade de um contraditório diferido, o CPC/2015 deixa claro que, será após a produção de provas que o juiz decidirá sobre o incidente.

O incidente de desconsideração será resolvido por meio de uma decisão interlocutória. É o que traz o artigo 136 do CPC/2015.

Referida decisão poderá ser recorrida por um agravo de instrumento, nos termos do artigo 1.015, IV, do diploma supracitado.

É importante ressaltar que a desconsideração pode se dá no Tribunal, sendo que o parágrafo único do artigo 136 do CPC/2015 aduz que, contra a decisão proferida pelo relator caberá agravo interno.

O autor Daniel Amorim Assumpção Neves entende que a desconsideração pode ser instaurada em processo de competência originária de Tribunal, uma vez que o artigo 134 do CPC/2015, já abordado no presente trabalho, preleciona que o incidente será cabível em todas as fases do processo de conhecimento.  

A respeito do incidente de desconsideração no novo diploma processual em análise, vale consignar, por fim, que, em seu artigo 137, o legislador decidiu que a fraude a execução será reconhecida quando a alienação ou oneração de bens ocorrerem após o acolhimento do pedido de desconsideração.

A intenção deste dispositivo é de punir o sócio ou administrador que aliena ou onera os seus bens, para que, na execução, estes não sejam atingidos. Ademais, visa à proteção do terceiro prejudicado, para que seja, de fato, ressarcido dos prejuízos.

Tal dispositivo, no entanto, se contradiz ao artigo 792, § 3º do mesmo diploma, uma vez que este, entende que haverá fraude à execução quando a alienação ou oneração de bens se der após a citação da parte cuja personalidade jurídica se pretende desconsiderar e não após o acolhimento do pedido.

A doutrina majoritária se posicionou no sentido de que este último dispositivo é o mais adequado, uma vez que a parte precisa ter ciência da instauração do incidente (NEVES, 2016).

Não menos importante, necessário se faz abordar as inovações sobre a desconsideração advindas com a reforma trabalhista.

 Trazida pela lei 13.467/17, publicada no diário oficial da união no dia 14 de julho de 2017 e em vacatio legis[7]desde então pelo período de 120 dias, trouxe significantes modificações no tocante à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para se assegurar o crédito trabalhista devido pelo empregador. As referidas modificações foram inseradas no título X, capítulo III, seção IV – do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, com o novo artigo 855-A, que assim prevê: “Art. 855-A.  Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil. § 1o  Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente: I – na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do § 1o do art. 893 desta Consolidação; II – na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo; III – cabe agravo interno se proferida pelo relator em incidente instaurado originariamente no tribunal. § 2o  A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (BRASIL, 2015).”

Da breve análise do referido artigo, a primeira impressão que se pode ter é de uma maior rigidez para a utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para se atingir o patrimônio dos sócios uma vez que o método utilizado será o incidente de desconsideração já consagrado pelo código de processo civil de 2015. Sobre esta primeira análise, importantes são as considerações do procurador do distrito federal, Bruno Cesar Gonçalves Teixeira, que assim explana em seu artigo: “No que concerne à desconsideração da personalidade jurídica, para a sua efetivação será imprescindível a instauração de um incidente, que suspenderá o processo e seu acolhimento, na fase de execução, desafiará agravo de petição, independentemente de garantia do juízo (adição do artigo 855-a na clt). Por conseguinte, com a nova disciplina, a possibilidade real de se “levantar o véu” e atingir os bens particulares dos sócios, em vez dos bens da sociedade, será consideravelmente adiada e dificultada (TEIXEIRA, 2017)”

Considerando que a nova lei trabalhista seguirá o procedimento do incidente para a instauração da desconsideração da personalidade jurídica, seguindo o mesmo procedimento previsto no código de processo civil de 2015, tem-se a percepção que surgirá assim uma maior segurança para os sócios da empresa que, atualmente, sofrem com a aplicação análoga ao código de defesa do consumidor e da teoria menor, como já visto anteriormente neste trabalho. É possível se afirmar isto, uma vez que, com o procedimento do incidente, será oportunizado aos sócios exercerem o direito ao contraditório e a produção de provas para se defender, além de outra novidade que, aliás, excede ao procedimento previsto no CPC/2015 nos artigos 133 a 137, que consiste na possibilidade da concessão de tutela de urgência de natureza cautelar, conforme claramente expõe o artigo publicado na revista eletrônica consultor jurídico[8], em 27 de julho de 2017.

Portanto, muitas respostas ainda surgirão às inúmeras indagações a partir do momento em que este incidente de desconsideração da personalidade jurídica começar a ser utilizado na prática processual. Ainda assim, no que tange aos aspectos processuais, já se esboça uma aproximação do direito trabalhista ao procedimento do CPC/2015 e um distanciamento do CDC, já exaustivamente abordados neste trabalho, impressão esta que só será ratificada ou afastada com o desenvolver da matéria na prática perante os tribunais.

Considerações Finais

Através das explanações feitas no presente trabalho, verificou-se que, em que pese a personalização seja responsável por inúmeras benesses para a atividade econômica, o seu mau uso pode gerar grandes constrangimentos para o mercado e sociedade como um todo. A partir do momento em que a personalidade jurídica começou a ser utilizada para prejudicar credores e fraudar terceiros, surgiu a necessidade de se criar um mecanismo para cessar estes comportamentos.

A desconsideração da personalidade jurídica surge neste contexto. Conforme demonstrado no trabalho, muito bem desenvolvida pela jurisprudência, e depois de muito tempo consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, tal instituto vêm sendo aplicado como meio eficaz de afastar a autonomia da pessoa jurídica quando esta for utilizada de forma indevida e quando presentes os requisitos legais abordados nesta monografia, que a depender, se enquadrará na Teoria Maior ou Teoria Menor da desconsideração.

Conforme se verificou, a observância dos requisitos materiais é de suma importância quando da aplicação do incidente, tendo em vista que, caso não seja reconhecido quaisquer requisitos abarcados por lei, não há o que se falar no incidente de desconsideração.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, imperioso se fez trabalhar as inovações acerca do instituto, que na verdade, após a sua regulamentação processual, passou a ser um incidente.

Dentre as inovações trazidas pelo CPC/2015, a mais elementar abordada neste trabalho foi as possibilidades de aplicação ex offício do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista ainda ser um tema amplamente discutido e cheio de indagações as quais foram brevemente abordadas no presente trabalho, utilizando para análise os âmbitos do ordenamento jurídico que mais utilizam o incidente de desconsideração.

Diante de tantos posicionamentos doutrinários diferentes, no que tange ao agir de ofício na determinação do incidente, relevante se fez a explanação das decisões judiciais sobre o tema, que conforme exposto, foram diversas. No entanto, pôde-se concluir que, após a exigência de requerimento da parte ou do Ministério Público, trazida pelo CPC/2015 para a aplicação da desconsideração, o agir de ofício tornou-se impossível, sendo esta a regra definitiva para a aplicação do incidente. Todavia, tal regramento poderá ser afastado em certas hipóteses, como nas relações de trabalho e de consumo.

Ainda sobre os aspectos processuais da desconsideração, forçoso se fez a breve demonstração das inovações advindas da reforma trabalhista, que, conforme explicado, demonstrou um maior rigor para a aplicação do incidente.

Diante do exposto, conclui-se que, é fundamental que haja uma análise profunda do caso concreto, verificando primeiramente se estão presentes os requisitos materiais e, posteriormente se é possível ou não rechaçar o artigo 133 do CPC/2015, a fim de que seja aplicado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica de ofício pelo juiz.

 

Referências
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________. Lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm. Acesso em 16 de julho de 2017, às 15h.
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________. STJ – REsp: 279273 SP 2000/0097184-7, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Julgamento: 04/12/2003, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 29.03.2004 p. 230RDR vol. 29 p. 356. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7381192/recurso-especial-resp-279273-sp-2000-0097184-7. Acesso em 30 de agosto de 2017, às 10:20.
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________. TRT-1 – RO: 01000444020165010284, Relator: CLAUDIA DE SOUZA GOMES FREIRE, Data de julgamento: 22/11/2016, nona turma, Data de publicação: 08/12/2016. Disponível em: https://trt-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/417201713/recurso-ordinario-ro-1000444020165010284. Acesso em 13 de agosto de 2017, às 21h.
________. TRT-2 – AP: 00196002119925020482 SP 00196002119925020482 A20, Relator: ROVIRSO BOLDO, Data de Julgamento: 03/06/2015, 8ª TURMA, Data de Publicação: 10/06/2015. Disponível em: https://trt-2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/311857045/agravo-de-peticao-ap-196002119925020482-sp 00196002119925020482-a20. Acesso em 22 de agosto de 2017, às 07:10.
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Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Fernando Pereira Jorge Professor do curso de Direito na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES e orientador do Serviço de Assistência Judiciária Gratuita da UNIMONTES (SAJ)

[2](TRT-2 – AP: 00196002119925020482 SP 00196002119925020482 A20, Relator: ROVIRSO BOLDO, Data de Julgamento: 03/06/2015, 8ª TURMA, Data de Publicação: 10/06/2015)

[3](TJ-PR – Ação Civil de Improbidade Administrativa: 8981048 PR 898104-8 (Acórdão), Relator: Luiz Henrique Miranda, Data de Julgamento: 24/07/2013, 12ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 1161 null)

[4](STJ – AgInt no AREsp: 589840 RS 2014/0249698-3, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 18/05/2017, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/06/2017)

[5](STJ – REsp: 279273 SP 2000/0097184-7, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Julgamento: 04/12/2003, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 29.03.2004 p. 230RDR vol. 29 p. 356)

[6](STJ – REsp: 1444960 MG 2014/0068127-9, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 13/09/2016)

[7]Vacatio legis é um termo jurídico, de origem latina, que significa vacância da lei, ou seja "a lei vaga", que é o período que decorre entre o dia da publicação de uma lei e o dia em que ela entra em vigor, ou seja, que tem seu cumprimento obrigatório.

[8]Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-jul-27/reforma-trabalhista-tambem-afeta-operacoes-empresariais-banca. Acessado em: 28/09/2017.


Informações Sobre os Autores

Camila Caldas Landim

Acadêmica de Direito da UNIMONTES

Naiara Thainã Silva Almeida

Acadêmica de Direito na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES


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