Famílias: retalhos e retratos do tecido social contemporâneo

Resumo: Família é um fenômeno cultural de grande relevância social e jurídica. É sob esse aspecto que o presente artigo contextualiza o tema, enfocando a pluralidade das famílias no cenário contemporâneo. Na busca do conceito institucional de família, o texto apresenta uma abordagem acerca da multiplicidade de famílias e conglomerados familiares existentes na sociedade e representadas pela arte, bem como da transformação do tecido social quanto ao reconhecimento das novas formações, tendo a afetividade como valor agregador na atualidade, resplandecendo com efervescência e se situando entre o conhecimento e a evolução social[1].

Palavras-chave: Família. Multiplicidade. Arte. Afetividade.

Abstract

Family is a social phenomenon of great relevance, both from a social and a legal aspect. It is under this point of view that this article contextualizes the subject, with a focus on the pluralism of families in the contemporaneous scenario. In the search for an institutional concept of family, the text presents a broach on the multiplicity of families and familiar conglomerates existing in our society and represented by the arts, as well as the transformation of the social network in relation to the acknowledgement of new forms of family, having affection as the main element of aggregation nowadays, a concept that is rapidly growing and is placing itself between knowledge and social evolution.

Keywords: Family. Multiplicity. Arts. Affection.

Sumário: Introdução. 1. Multiplicidade de famílias e conglomerados familiares: a arte como expressão da realidade social. 2. A transformação do tecido social quanto ao reconhecimento das novas formações familiares: as famílias desenhadas legalmente. 3. A afetividade como valor jurídico e fator de agregação. Considerações finais. Referências.

Introdução

Família é um microuniverso, podendo ser considerada um sistema social, um grupo social primário. Até parece fácil conceituar família, afinal é algo comum a todos. Entretanto, não existe um conceito estabelecido, não é universal, já que se altera ao longo do tempo e se infiltra por diversas áreas.

Significativas mudanças ocorreram e ainda ocorrem na sociedade ocidental. Assim, antes de se buscar conceituar família, é preciso identificar em que contexto se quer defini-la: jurídico, psicológico, religioso, institucional ou social. Em seguida, é necessário fazer um recorte temporal, ou seja, historicamente onde se encontra, ou melhor, se encontram essas famílias que se pretende conceituar.

A abordagem tratada neste artigo enfoca inicialmente a multiplicidade de famílias e conglomerados familiares existentes na sociedade e representadas pela arte. Na sequência, discorre-se sobre a transformação do tecido social quanto ao reconhecimento das novas formações, abordando os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da igualdade aplicados ao núcleo familiar; e, ao final, versa-se acerca da questão da afetividade como valor jurídico e como forma de agregação.

1. Multiplicidade de famílias e conglomerados familiares: a arte como expressão da realidade social

Toda e qualquer formação social sempre teve a família como a base ou o centro de onde tudo começou a se organizar. E, por constantemente receber essa importância, a sociedade, bem como a ordenação legal, respaldou-a com grande atenção dando promoção aos seus membros. Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), ao conceituar família, utiliza apropriadamente a expressão “núcleo estruturante fundante”.

As artes são manifestações culturais oriundas de determinada sociedade e expressão de épocas específicas. Nesse sentido, a música e a literatura são legados marcantes provenientes das organizações sociais.

Em diversas composições artísticas brasileiras, por exemplo, é possível observar as formações familiares e o retrato da sociedade em vários momentos históricos, tais como: a crença e a descrença no amor, os amores furtivos, a mulher submissa, as conversas de botequim, as traições e os traídos.

A Bíblia – uma das obras mais antigas do mundo e que reúne os escritos sagrados da humanidade – noticia a primeira formação familiar (Adão e Eva, e seus filhos Caim e Abel), bem como a consequência do conflito entre os irmãos que atingiu diretamente a estrutura dessa família, mostrando que um homem pecador também teve filhos pecadores, um dos quais se caracterizou como o primeiro homicida da humanidade.

A literatura, por sua vez, se constitui como uma boa ferramenta para retratar diversos aspectos sociais ao longo do tempo e também da realidade, especialmente as formações familiares existentes. A morfologia familiar, nesse sentido, pode ser analisada em uma escala de grandeza.

Em “Helena” de Machado de Assis, por exemplo, a abordagem do tema foi feita com a morte do Conselheiro Vale. Seu testamento trouxe uma surpresa para o seu até então filho único Estácio e para sua irmã D. Úrsula: a revelação de mais um filho, Helena. Além de garantir em testamento os mesmos direitos à filha, o Conselheiro impôs que esta fosse acolhida e recebesse todo o afeto por parte dos familiares.  

Noutra obra do mesmo autor, “A mão e a luva”, a questão familiar também esteve presente da seguinte maneira: Guiomar foi adotada pela madrinha (baronesa viúva), que perdera a única filha, e que acabou repartindo o carinho entre a afilhada e o sobrinho Jorge, filho único de sua irmã já falecida.

Na literatura portuguesa, encontra-se presente o conflito em torno da formação familiar no livro “O Retrato de Ricardina”, de Camilo Castelo Branco, onde o abade de Espinho, Leonardo Botelho de Queiroz, um padre despótico, influente e poderoso, exige que as duas filhas se casem com homens escolhidos por ele. Mas, enquanto Eugênia, morena, risonha e de olhos negros e vivos, obedece a vontade paterna, Ricardina, alva, de olhos estáticos e ar melancólico, se revolta contra a decisão do progenitor, defendendo, de forma determinada, o seu amor.

Em “As Pupilas do Senhor Reitor”, outro romance português de autoria de Júlio Dinis, foram descritos os costumes rurais e as maledicências familiares, com caráter moralizador e religioso. A história gira em torno de Daniel e Pedro e das irmãs Margarida e Clara, filhas do reitor. Após um inocente romance na adolescência entre Daniel e Margarida, o rapaz é enviado por seu pai para estudar fora da aldeia. Ao retornar, esquece-se de Margarida e interessa-se por Clara, que se tornou a noiva de Pedro. O conflito familiar se dá quando durante um encontro entre Daniel e Clara, o seu noivo os surpreende e Margarida, mais que depressa, assume o lugar da irmã. Esse acontecimento causou grande escândalo e comprometeu a reputação da moça, denotando o caráter moralizador presente na sociedade e na família naquela época.

De volta à literatura nacional, outro autor, Nelson Rodrigues, considerado um dos maiores escritores brasileiros do século XX, retratou a realidade de uma sociedade conservadora, registrando assuntos relacionados à família, tais como concubinato, adultério, violência doméstica, procriação etc. Na obra “O Netinho”, um casal, que não conseguia ter filhos por impossibilidade biológica do marido, se viu pressionado a providenciar um bebê, que foi concebido por outro homem. Esse fato, porém, não impediu que o marido declarasse seu afeto pela criança, quando afirmou que o amaria como se fosse seu filho biológico. Nota-se, portanto, que a narrativa retrata que essa espécie de fecundação heteróloga realizada por meios naturais não interferiu na relação afetiva estabelecida no contexto familiar.

Na obra de Gilberto Freyre intitulada “Casa grande & senzala”, pode-se identificar na narrativa que o autor aborda a família tradicional, patriarcal, extensa e de origem ibérica.

Percebe-se, portanto, que as mudanças ocorridas na instituição familiar são um reflexo das alterações ocorridas na sociedade, retratadas de formas variadas pela literatura, a exemplo das obras citadas.

Outro aspecto que merece destaque diz respeito às transformações sofridas pela sociedade ocidental no século XIX, que culminou no advento do capitalismo e na consequente urbanização, passando a permitir novas formas de convivência social. Desse modo, a ascensão da burguesia trouxe para o mundo ocidental uma nova mentalidade, uma maneira diferente de organização das vivências familiares e domésticas.

No entanto, não se pode esquecer também que assuntos relacionados à família têm estado num plano secundário na evolução das lutas sociais em todas as organizações sociais. Estudos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontam que, após o advento dos denominados “Ano Internacional da Família”, “Ano Internacional da Mulher” e “Ano Internacional da Criança”, aconteceram significantes mudanças de ordem legal, política e social que alcançaram as famílias. Como exemplos dos instrumentos normativos internacionais estão a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e as Regras de Beijing, os quais elevaram o assunto a um patamar mais representativo.

Aproximando-nos da visão jurídica do tema, a Constituição brasileira (art. 226) e a Constituição portuguesa (art. 67) perfilam a família como a base da sociedade. Assim, amparados nessa colocação, é possível interpretar a importância da família na ordem social e na Lei Maior transportada para uma ordem legal. 

Uma vez que o assunto família está inserido no contexto dos direitos humanos para o crescimento e reconhecimento de toda e qualquer transformação, torna-se necessária a sua consolidação, isso porque as mudanças constitucionais vieram das lutas patrocinadas em prol da mulher e das forças em defesa dos direitos humanos, mas nenhuma especificamente em favor da família.

Tal consolidação está presente em diversos ordenamentos jurídicos que definem a igualdade dos direitos entre homens e mulheres na sociedade conjugal, a consagração do divórcio, a afirmação do planejamento familiar como livre decisão do casal e a previsão da criação de mecanismos para mitigar a violência no interior da família, são os resultados das lutas feministas junto aos legisladores de forma ampla.

Para o Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF), o princípio da dignidade da pessoa humana é o centro axiológico dos sistemas jurídicos compreendido como fundamento moral dos direitos humanos. Atrelado a ele desponta a possibilidade de autodeterminação na vida representada pelo princípio da liberdade, segundo o qual o indivíduo faz suas escolhas existenciais. O princípio da igualdade é multifacetado, caleidoscópico no sentido de mostrar diversas imagens de acordo com o movimento da sociedade. Assim é o caso da igualdade como reconhecimento que traduz o respeito à identidade do outro assegurando o direito do outro ser diferente.

Dentro de uma classificação social, a família, além de estar situada na estrutura basilar, logicamente, e não poderia deixar de ser, recebe influência da sociedade e transmite também influência para a sociedade, numa troca de referências simultâneas, uma simbiose, onde uma torna-se espelho da outra.

Percebe-se hoje que a sociedade é uma massa mutante do mesmo modo que a família. Assim, aquele modelo hegemônico, referendando a conhecida “família ideal”, interpretada por um núcleo estável, sofreu e sofre mudanças, transportando as referências para moldes diferentes, contudo sem abandonar a busca por uma vida afetiva estável e agradável, onde se cria e educa crianças.

O contexto atual mostra que o modelo de família nuclear tradicional que foi estabelecida como base da sociedade, tornando-se o centro da estruturação de uma organização social, onde o indivíduo encontra guarida e amparo e se resguarda, garantindo seus direitos, transformou-se por completo sem deixar de existir, mas se fez presente também em outros moldes, outros formatos, outras constituições.

Nos conceitos divulgados por doutrinadores ou em publicações atualizadas são encontrados modelos diferenciados, mas, curiosamente, sem deixar de ser a família uma estrutura basilar. A obra “Família brasileira a base de tudo”, patrocinada pelo Unicef (KALOUSTIAN, 2000), exemplifica esse molde e descreve que, mesmo em meio a discussões e enfraquecimento ou desagregação, continua presente e com espaço privilegiado na socialização. A mesma publicação aduz que a família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência de desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma como vem se estruturando.

Esse arranjo é que tem se transformado, não se confundindo mais com o primeiro grupo humano organizado, de molde hegemônico. Atualmente o conceito de família extrapolou os limiares anteriores. E, apesar de se querer estabelecer um modelo, a jurisprudência, os doutrinadores e a realidade têm revelado novos horizontes. Os conglomerados familiares estão amparados pelos princípios de proteção e afetividade, não obstante os laços consanguíneos, mas, diferentemente, estes hoje não são os únicos elos, e também não se pode esquecer das obrigações recíprocas, responsabilidades isonômicas e organizadas relações.

Portanto, é tudo bem distante do antigo conceito da união entre homem e mulher com propósito principal da procriação, ao mesmo tempo em que aumenta a variação dos moldes de família que fogem a essa estrutura. Não somente considerando as uniões homoafetivas, mas principalmente porque os casamentos têm tido menos duração, ou seja, o crescente número de divórcios e separações contribui para o aumento desse conglomerado familiar diferenciado.

O desfazimento dos casamentos forma famílias monoparentais e, ainda, famílias mais complexas, reformuladas, reconstituídas, pluriparentais posto que acabam ganhando nova formatação com o advento de novas uniões.

Assim, a principiologia que rege a família, como a proteção, o cuidado, vai se elastecendo. O conglomerado é ampliado com a nova formatação, em alguns casos quase uma comunidade, em que as obrigações parentais são divididas por mais de um núcleo, ou por vários responsáveis diretamente envolvidos, são pais socioafetivos, padrastos, madrastas, novos pais e mães que vão se somando com as novas uniões.

Ainda com lastro no conceito estabelecido pelas Constituições brasileira e portuguesa – a família como base da sociedade –, acredita-se que tal concepção é atribuída ao local onde são ensinados e absorvidos os primeiros valores morais e éticos que formatam uma pessoa ou uma personalidade. É nesse conceito que se encaixa o apresentado nas legislações pátrias. É o local onde são aprofundados e valorados os laços de solidariedade, afeto, zelo e união, todos determinados pela cultura e passionalidade envolvidas.

Portanto, não se encontra nesses conglomerados um único modelo ou um modelo estabelecido anteriormente. Há que se observar ainda que, considerando os fatores sociais, não se pode esquecer os fatores econômicos e financeiros que fortemente aliançam ou separam famílias.

2. A transformação do tecido social quanto ao reconhecimento das novas formações familiares: as famílias desenhadas legalmente

Mudanças no espectro social vêm ocorrendo com maior expressividade a partir do século XIX e a relação estabelecida entre família e sociedade é de interdependência – uma influenciando a outra –, não podendo mais ser ignorada, tampouco deixar de se reconhecer as novas formações.

Em meados do século XIX, o Estado, em sua máxima expansão e domínio, começou a influenciar na instituição familiar, distanciando-a da religião e fazendo dos laços matrimoniais um contrato. Desse modo e por causa dos interesses familiares, houve também a busca por uma liberdade religiosa, com o intuito de desfazer os vínculos outrora rígidos da igreja cristã. E, como já ressaltado, essa troca de valores e interesses recíprocos, oriundos da sociedade e se refletindo na família, já se delineava de forma marcante.

No Brasil dessa época, como não poderia deixar de ser, o modelo era o da família romana, dada a influência da Igreja sobre a coroa portuguesa. A estrutura legal, portanto, era predominantemente embasada nas Ordenações do Reino. Somente com o advento do primeiro Código Civil de 1916, vigente a partir de 1917, é que teve início o legado legislativo brasileiro permeado por algumas mudanças. Todavia, mesmo com várias leis orbitais que passaram a compor um complexo legal positivado e extenso não ocorreram grandes mudanças.

Já no século XX o grande marco, principalmente no Brasil, foi a permissão constitucional para o desfazimento dos laços do casamento por meio do divórcio, o que já era uma demonstração da vontade da sociedade que logicamente estava impulsionada pelos interesses da família.

Ainda nesse século surgiu a família nuclear proveniente de união estável entre homem e mulher, longe da forma sacramental anteriormente predominante – e a família monoparental – fruto do divórcio e da filiação extramatrimonial, originando vários modelos de família, com mais liberdade.

Mas, com as alterações patrocinadas pela sociedade, a família atingiu interesses com maior liberdade, sendo a busca pela igualdade o maior de todos os motores propulsores das mais recentes mudanças.

Com a liberdade alargada, o divórcio ganhou força, assim como a família considerada legítima deixou de receber atenção exclusiva, alterando o reconhecimento da família natural à luz da legislação, com decisões jurisprudenciais cada vez mais vanguardistas exaradas pelos diversos tribunais brasileiros.

Nesse toar, nos últimos cinquenta anos, as mudanças foram latentes em todos os aspectos, tanto em tecnologia e informação quanto à margem de uma nova revolução industrial. Não se sabe ao certo se o que houve foram mudanças ou evolução, mas, com certeza, as transformações vêm acontecendo dia a dia. Primeiramente o reconhecimento da própria transformação e, secundariamente, o reconhecimento do fruto dessas transformações. Tais mudanças, especialmente quanto às questões familiares, esbarram na bandeira conservadora do tema. No entanto, o Brasil apresenta uma visão transformadora e crítica da sociedade, propiciando o olhar sobre a família de um campo ampliado e se sujeitando à realidade social e suas determinações, condicionamentos e influências.

A busca pela igualdade já inserida nos alcances da liberdade fragilizou o modelo marital e parental totalmente sob a influência da sociedade e consubstanciada nos costumes de uma nova sociedade, construindo nova legislação.

Mas, como a lei quase sempre segue os costumes, com a evolução da família, esse processo não foi diferente. Em síntese, a mulher ganhou independência econômica com a força do trabalho que, por sua vez, influenciou também as normas trabalhistas, aliada à maior liberdade, à possibilidade legal da emancipação dos filhos e sua independência financeira. Nesse mesmo sentido, a liberdade alcançada pelo divórcio se tornou crescente. As mulheres, em sua maior fase de independência e desempenho econômico-financeiro dentro da família, buscaram o controle de natalidade, o que também foi incentivado pelo Estado.

As filiações surgem hoje de formas distintas no seio dos novos modelos familiares – filhos naturais, filhos adotivos, filhos advindos de novos relacionamentos, filhos provenientes de relacionamento anteriores e, até mesmo, oriundos de reprodução assistida heteróloga –, devendo ser atribuído tratamento isonômico a toda e qualquer forma de filiação. É nessa seara que o princípio da isonomia paira nesses conglomerados

O princípio da igualdade também apresenta outra vertente, devendo ser observado entre cônjuges e companheiros, não importando a origem da união nem o sexo dos integrantes.

A paridade ou igualdade quanto à liderança da família e a guarda os filhos está bem representada atualmente no direito brasileiro pela guarda compartilhada. Essa isonomia demonstra claramente a responsabilidade de ambos os genitores na coordenação dos filhos em todos os aspectos que envolvem sustento, educação, proteção, entre outros.

Todos esses aspectos fragilizaram os laços perpétuos e as juras do sacramento do casamento, mas ao mesmo tempo passou-se a trilhar um novo caminho de liberdade ligado ao afeto, tornando-o o maior sustentáculo da relação familiar, ou seja, os laços formais deixaram de ser a motivação exclusiva dessa estrutura social organizada, reorganizada chamada família.

A família se transforma radicalmente, os personagens se modificam, papéis e funções são alterados, atingindo rigidamente a estrutura da família. Apoiando-se em Zygmunt Bauman[2] – teórico do mundo líquido – pode-se até mesmo afirmar que se está diante da “família líquida”, não no sentido de fácil esvaziamento, mas de maior fluidez e flexibilização.

Sem esgotar todos os modelos, é possível elencar algumas dessas famílias, tais como as matrilineares, patrilineares, monoparentais, contendo o traço cultural como fator de maior influência. Deve-se pensar na família de modo plural, cuja base está na tolerância com as diversidades, eliminando do contexto o racismo amplamente arraigado na sociedade brasileira, o preconceito, mudando a concepção política e psicoafetiva do tema. Assim, as famílias modernas se constituem pela união afetiva e suas evoluções, por pessoas do mesmo sexo, por um dos genitores e sua prole, pela família anaparental, dentre outras.

Um fator preponderante veio para fortalecer e se tornar a base aos novos modelos de família – o afeto –, inclusive agregando valor jurídico ao instituto da família, conforme se descreve a seguir.

3. A afetividade como valor jurídico e fator de agregação

A família nuclear composta pelos pais e sua prole ganha forma diversa em dois pais, duas mães, bem assim em um pai, ou uma mãe, ou dois irmãos sem nenhum pai, e seguem muitos os exemplos, sem deixarem de ser famílias nucleares.

Maluf e Maluf (2013) elencam alguns modelos replicados aqui: família matrimonial, família formada na união estável, monoparental, unilinear, homoafetiva, famílias recompostas, mosaico, pluriparetal, anaparental, eudemonísta, paralela, concubinária. Insta ressaltar que todas elas buscam a inserção do indivíduo e a proteção do ser humano.

Não obstante, todos esses modelos imputaram mudanças no campo legal, técnico e do direito propriamente dito. Assim, as famílias ligadas a um contexto temporal buscam liberdade, igualdade e afeto, dentro de uma estrutura menos rígida e mais ligada ao bem-estar. Desse bem-estar merecem ser destacados os valores pessoais, representados no direito pelos direitos da personalidade, os direitos individuais e os direitos humanos. Logo, o desenho de renovação das famílias é marcado pela afetividade como base.

O afeto, nesse caso, está relacionado ao cuidado com os entes formadores da família, à proteção, ao lugar onde é possível se desenvolver como ser humano, construindo e valorizando os interesses e o bem-estar de cada membro familiar, traduzindo legalmente em conceito da dignidade da pessoa humana.

O princípio da dignidade da pessoa humana personifica a família unida pela afetividade e cujo maior patrimônio é a própria pessoa, e não mais o patrimônio físico. Nesse cenário, o Direito de Família é o ramo do direito privado mais gerenciado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Em razão do fundamento da família ser o afeto, novos moldes familiares começam a despontar. Do mesmo modo, as formas de filiação mudaram substancialmente, como observado anteriormente. Ter filhos para seguir o modelo patriarcal ou para perpetuar o nome e o patrimônio da família deixou de ser prioridade, pois se passou a buscar um novo modelo de filiação que incorporasse a vontade de formar uma família para uma realização pessoal, independentemente dos modelos antes vigentes.

Hoje os filhos chegam por adoção ou pela socioafetividade em tempo e idades diferentes, sendo reconhecidos e integrados pelo afeto. Além disso, o reconhecimento das uniões homoafetivas – o casamento entre pessoas do mesmo sexo – tornou-se um fato marcante na constituição de um novo modelo de instituição familiar.

A partir desse ponto são ressaltados então os direitos humanos e os direitos fundamentais, respaldando e delineando tais uniões, imputando à sociedade o respeito por essas alianças ou novas famílias. Cobranças traçam uma nova forma e modelos reais, para os quais a legislação deve começar a ser remodelada, desfazendo os antigos modelos de outrora, extremamente arraigados. Esses novos modelos de família refazem os usos, os costumes e a própria lei, que no passado não poderiam ser aceitos ou concebidos.

Ainda em relação ao afeto, é notório nos últimos anos que os traços moldados e baseados na importância desse sentimento estão cada vez mais fortalecidos. Tanto que os tribunais são uníssonos quanto à condenação de genitores pelo abandono paterno-filial, tratando de denominar tal descaso como teoria do desamor, gerando, inclusive, indenizações aos filhos tolhidos do afeto paternal.

Enfim, destacam-se diversas modalidades marcantes de famílias formatadas pela afetividade, identificadas pela união afetiva de pessoas que convivem mutuamente que podem ou não possuir laços de parentesco, famílias constituídas a partir de rompimentos de laços familiares anteriores que podem conter filhos desses laços, assim como filhos advindos de nova união.

Considerações finais

A família contemporânea tem como objetivo precípuo a busca da felicidade individual e do bem-estar de seus membros. Nessa busca preponderam os interesses de ordem da sociedade ou do estabelecimento patrimonial, transferindo nesse momento seus interesses maiores para a sociedade.

A sociedade, no contexto atual, tem que zelar pela ética e pelo respeito aos moldes diferenciados de família e seus valores muito mais no campo do abstrato, que remete ao afeto, do que aos interesses econômicos ou morais e patriarcais anteriores.

Assim, com os modelos formados, inclusive à margem do direito, o contexto de família nuclear forma uma parte da base da sociedade, mas essa base hoje prioriza o afeto, que representa a proteção e o cuidado do ser humano.

Dessa forma, ao tentar descrever a família, é necessário buscar um conceito muito mais amplo, até porque não se pode nem pensar em admitir um modelo como o anteriormente designado como adequado ou legítimo, posto que, como abordado, as famílias sempre foram e sempre serão diversas. Logo, como base da sociedade, a família também é mutante, instável e diversa. Isso porque os membros que compõem o núcleo familiar estão sempre em formas diferentes de contatos e ideias, sejam elas convergentes ou divergentes, gerando mudanças, as quais podem ser em decorrência do trabalho ou do ambiente, o que acaba por alterar visivelmente o relacionamento.

Em meio a essa tempestade de influências, filhos, membros, genitores, estão sendo empurrados, motivados em uma forma de existir e coexistir sempre renovada e adaptável logicamente, mas também transformadora, tanto de dentro da família para a sociedade quanto desta para a família, numa troca crescente e incessante.

Em suma, toda essa miscelânea inerente ao ser humano vai se revelando, apresentando um desenho próprio, recortando, aglutinando, conglomerando cada vez mais pessoas diferentes, unidas por uma mesma direção de tutela, zelo, afeto, proteção. Nessa mistura mágica e exclusivamente humana, o desenho da palavra família torna-se tridimensional (WELTER, 2009), por dentro, por fora, outrora raso, outrora profundo, mas sempre moldando um mundo inclusivo onde se ancora, por que não dizer, o mundo dos relacionamentos. É a tridimensionalidade humana baseada no mundo genético, no mundo afetivo e no mundo ontológico.

 

Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BELTRÃO, P. C. Sociologia da família contemporânea. São Paulo: Vozes, 1973.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. São Paulo: Atlas, 2015, v. 6.
KALOUSTIAN, Sílvio Manoug (Org.). Família brasileira a base de tudo. 4. ed. São Paulo: Cortez, UNICEF, 2000.
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de direito de família. São Paulo: Saraiva, 2013.
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é… Rio de Janeiro: Agir, 2006.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Manual de direito das famílias e das sucessões. Belo Horizonte: Del Rey/Mandamentos, 2008.
WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
 
Nota
[1] Palestra proferida no I Encontro Luso-brasileiro de direito das famílias que ocorreu nos dias 15 e 16 de fevereiro de 2016 em Lisboa no Auditório do Centro de Estudos Judiciários (CEJ).

[2] Grande pensador da modernidade e sociólogo que qualificou com propriedade o célebre conceito de liquidez.


Informações Sobre o Autor

Denise Bastos Moreira


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