A (im)possibilidade da penhora do capital de giro para a quitação de débitos trabalhistas

Resumo: O presente artigo tem como objetivo trazer à discussão os limites da constrição e penhora do capital de giro de pessoas jurídicas, em face de execuções de dívidas de natureza trabalhista. De forma mais específica, busca-se aqui analisar de forma objetiva o grau de importância do capital de giro para a manutenção das atividades da executada, de modo a determinar os limite da execução utilizando a métrica do princípio da menor onerosidade para o devedor em contraponto com prioridade do débito trabalhista em função de sua natureza alimentar e sob a ótica do princípio protetor.

Palavras chave: Dívida trabalhista. Execução. Penhora. Capital de giro. Menor onerosidade.[1]

Abstract: This article aims to bring to the discussion the limits of the constriction and garnishment of working capital of legal entities, on the occasions of executions of debts of labor nature. More specifically, we aim to analyze in an objective way the degree of importance of the working capital to the maintenance of the activities of the executed one, in order to determinate the limits of the execution using the metric of the lowest onerosity principle for the debtor in counterpoint with the priority of the labor debt due to its feeding nature.

Keywords: Labor debt. Execution. Garnishment. Working capital. Lowest onerosity.

Sumário: Introdução; 1. Considerações preliminares; 1.2. Características do débito trabalhista; 1.2.1 Força atrativa do salário; 1.2.2 Natureza alimentícia do salário 1.3. Capital de giro; 2. O dilema; 2.1. Princípio da menor onerosidade para o devedor; 2.2. Direito ao trabalho; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

É sabido que o Direito serve, majoritariamente, para dirimir conflitos. Um dos conflitos mais recorrentes na sociedade, em função de interesses econômicos antagônicos, talvez seja aquele entre o patrão e o empregado. O empresário, na sua condição de proprietário e provedor dos meios de produção, naturalmente deseja maximizar seu lucro e diminuir suas despesas sempre que possível (coisa que, num pensamento simplista que já deveria ter sido superado, às vezes vem às custas do empregado), enquanto este ignora os riscos do empreendimento patronal e deseja sempre  um avanço em na remuneração e nas condições de trabalho. O legislador, pois, precisa colocar a importância das vontades na balança e fazer valer a melhor decisão para todos. Interpretando esse entendimento num caso concreto (Débito trabalhista vs Capital de giro), buscamos chegar à solução do embate exposto.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

1.2. PECULIARIDADES DO DÉBITO TRABALHISTA

É preciso salientar a diferença de tratamento dada ao débito trabalhista pelo legislador, em relação à outros tipos de inadimplemento. Isso se dá, evidentemente, ao elevadíssimo grau de importância conferido ao trabalho pela própria CF/88 quando, em seu artigo sexto, elenca-o como um direito social e, no artigo subsequente, determina de forma exaustiva quais são os direitos fundamentais correlatos. Destarte, os débitos advindos das relações laborais possuem peculiaridades que o distinguem das demais dívidas.

1.2.1 FORÇA ATRATIVA DO SALÁRIO

Baseado na ideia de que o pagamento habitual de uma parcela acoplada ao salário (por exemplo, a gorjeta) gera no trabalhador uma expectativa em relação à mesma, sobreveio o entendimento de que as características e proteções garantidas ao salário devem também ser concedidas às parcelas acessórias, revestindo-as de obrigatoriedade, irredutibilidade e todas as outras características do salário. A este fenômeno dá-se o nome de “força atrativa do salário”

1.2.2. NATUREZA ALIMENTÍCIA DO SALÁRIO

Lê-se na vigente Carta Magna:

“Art. 100. […] § 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo.“

O texto confere, aos créditos decorrentes de salário, preferência em relação a débitos comuns ao atribuir aos mesmos uma natureza “alimentícia”. Ora, nada diferente poder-se-ia dizer, uma vez que um dos objetivos primordiais do salário é, de fato, comprar alimento para a subsistência do trabalhador e de seus dependentes, função tal que evidentemente deve ser priorizada em face de outras de caráter menos vital. A natureza alimentar, como explanado no subtópico anterior, é extendida às gratificações, gorjetas e indenizações que apresentem habitualidade.

1.3. CAPITAL DE GIRO

Citando a explicação do SEBRAE Nacional:

“Capital de giro significa capital de trabalho, ou seja, o capital necessário para financiar a continuidade das operações da empresa, como recursos para financiamento aos clientes (nas vendas a prazo), recursos para manter estoques e recursos para pagamento aos fornecedores (compras de matéria-prima ou mercadorias de revenda), pagamento de impostos, salários e demais custos e despesas operacionais.” Grifo nosso.

Ora, seria justo dizer que bem como os fornos de uma padaria ou o balcão de uma loja, o capital de giro constitui uma ferramenta de trabalho essencial da pessoa jurídica. Em verdade, a atividade empreendedora não pode se dar sem uma reserva de capital que possibilite o funcionamento da mesma: a compra de estoque, o pagamento de serviços e de funcionários e demais gastos contínuos da empresa são pagos utilizando o capital de giro. Este montante, claro, cresce na medida em que a estrutura da empresa também o faz, mas não deve ser confundido com o faturamento ou o lucro.

2. O DILEMA

A CF/88 quando, no inciso IV do artigo 1º, elencou simultaneamente “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” como fundamentos da República Federativa do Brasil, certamente criou um paradoxo para ser medido e dosado pela legislação posterior. Colocados lado a lado, os dois valores citados são a totalidade do impulso econômico da esfera privada e, envolvendo classes de indivíduos com interesses muitas vezes conflitantes (majoritariamente as figuras do empregador e do empregado), a regulamentação deveria se dar de forma muito cuidadosa, de maneira tal a não colocar peso demais em um dos lados, prejudicando todo o sistema econômico. Este cuidado, entretanto, não pode ser encontrado nas normativas em vigor.

De forma diferente dos sistemas econômicos que, através de legislações exacerbadamente liberais, terminam prejudicando pesadamente o trabalhador quando há excesso de oferta de força de trabalho em face de pouca demanda, o Brasil conhece uma situação em que a avidez pela defesa dos interesses do empregado termina por justificar a aprovação de leis ultraprotecionistas que tornam o custo da atividade empreendedora (pedra fundamental da livre-iniciativa) proibitivo para a maioria da população. Desta maneira, a política pátria de legislar “a favor” do trabalhador, torna heróica a atividade das micro e pequenas empresas (setor responsável por 52% dos empregos formais do país[6]), que a legislação pouco faz para diferenciar das grandes multinacionais. Embora existam benefícios concedidos às micro e pequenas empresas como o modelo Simples Nacional de pagamento de impostos e as prioridades em licitações pela lei 8.666/93, esses incentivos são pálidos em comparação às gigantescas isenções fiscais ou empréstimos colossais do BNDS que as grandes empresas recebem.

2.1. PRINCÍPIO DA MENOR ONEROSIDADE PARA O DEVEDOR EM FACE DO PRINCÍPIO PROTETIVO

O princípio protetivo é uma das guias mestras do Direito do Trabalho. Nas palavras de Maurício Godinho Delgado:

‘Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro – visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.”

Podemos entender que este princípio busca trazer ao mesmo patamar dois indivíduos cuja relação naturalmente pressupõe disparidade hierárquica. Desta forma, as normativas trabalhistas devem ser vistas à luz deste desnível, e o processo legal deve buscar atenuar esta situação. Deste princípio decorrem vários outros, como o In dubio pro operario, Condição mais benéfica e Norma mais favorável.

Por outro lado, o Direito Civil traz o Princípio da Menor Onerosidade para o Devedor. Nas palavras de José Cairo Júnior:

“A satisfação do crédito do exequente constitui o principal objetivo da ação executiva. Para atingir essa meta, o credor pode dispor de vários procedimentos, sendo que o juiz deve dar preferência pelo deferimento daquele que seja considerado o menos oneroso para o executado, atendendo ao princípio do favor debitoris.

Como exposto pelo doutrinador, ainda que o crédito trabalhista esteja revestido de mais garantias que os débitos comuns, sua execução deve obedecer ao princípio da menor onerosidade ao devedor, caso seja possível no caso concreto, constituindo portanto um limite relativo à penhora e constrição. Desta maneira, em havendo possibilidade de se sanar a dívida de outra maneira menos gravosa, implica-se na impossibilidade de penhora imediata de valores referentes à capital de giro (geralmente feitos por meio de penhora eletrônica). Este entendimento de forma alguma contraria o princípio protetor, uma vez que constituindo limite relativo, pode ser desconsiderado na inexistência de outras maneiras de sanar o débito.  Defendendo o exposto, o acórdão abaixo:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. PENHORA DE CRÉDITOS. REFORMA DA DECISÃO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO NO 1º GRAU. GARANTIA DO JUÍZO RECAÍDO SOBRE BENS IMÓVEIS. REPÚDIO À PENHORA SOBRE CAPITAL DE GIRO DA EMPRESA. PRECEDENTES DO STJ. MODO MENOS ONEROSO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 620 DO CPC. RECURSO CONHECIDO. TODAVIA, NEGADO SEGUIMENTO. DECISÃO UNÂNIME. I- A impenhorabilidade do capital de giro resulta do fato de ser ele essencial à vida da empresa, não podendo ser atingido ou de qualquer … (TJ-PA – AG: 200330059553 PA 2003300-59553, Relator: MARIA DO CARMO ARAUJO E SILVA, Data de Julgamento: 27/04/2009, Data de Publicação: 09/11/2009)”

2.2. VALOR SOCIAL DO TRABALHO EM FACE DO VALOR SOCIAL DA LIVRE INICIATIVA

Como comentado anteriormente, existem dois valores em conflito: o do trabalho e o da livre iniciativa. Enquanto o primeiro é a maneira mais tradicional de subsistir e contribuir ativamente para o funcionamento das engrenagens da sociedade, o segundo possibilita o primeiro. Neste embate, exemplificado na situação da penhora do capital de giro para pagamento de débitos trabalhistas, é preciso identificar as consequências de uma vitória absoluta de um valor sobre o outro (coisa que não poderia acontecer, dado que a CF lhes deu idêntica importância).

Na primeira hipótese, em que o valor da livre iniciativa sobrepõe o valor do trabalho, há quase a garantia de que o interesse do empregador levará à abusos contra o empregado, diminuindo o valor de sua força de trabalho e retirando pontos positivos custosos das condições de trabalho. Se o valor do trabalho surpassa o valor da livre iniciativa, entretanto, não há espaço para que se empreenda e, consequentemente, menos empregos para todos. Reduzindo-se à termos da Teoria dos Jogos, é um clássico exemplo de dilema do prisioneiro, em que as duas partes ganhariam mais trabalhando juntas, mas são simultaneamente tentadas à trair umas às outras numa busca egoísta por segurança.

CONCLUSÃO

Em face do exposto no presente trabalho, depreende-se que a melhor maneira de sanar o conflito entre os valores sociais no caso-modelo é a aplicação mitigada (e não a supressão) do princípio da menor onerosidade para o devedor. Como habilmente exposto no voto da relatora do acórdão citado no tópico 2.1., congelar o capital de giro para forçar o pagamento dos débitos trabalhistas apenas obstaria a pessoa jurídica de, em sua atividade empresarial comum, produzir o suficiente para sanar o dito débito – e pior, criando outras dívidas com funcionários, fornecedores e prestadores de serviço. Assim, no curso do processo e tomando esse entendimento, jamais poderia um juiz deferir um pedido de, por exemplo, penhora eletrônica na ocasião da executada ter apresentado bens alternativos para a execução. 

 

Referências
[1] SOUZA, Mírian dos Reis Ferraz de. Aspectos do crédito trabalhista na execução. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr. 2015. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.53213&seo=1>. Acesso em: 04 set. 2017.
[2] MELLO, Camila Lorga Ferreira de. Conceito de execução civil e seus princípios informadores. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2010. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.26904&seo=1>. Acesso em: 04 set. 2017.
[3] BATAINI, R. B. . Execução pelo modo menos gravoso ao executado. É correto. Carta Forense , v. 1, p. 1, 2013. Disponivel em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/execucao-pelo-modo-menos-gravoso-ao-executado-e-correto/11734>. Acesso em: 04 set. 2017.
[4] PEREIRA, Luciana Francisco. O direito do trabalho e o princípio protetivo da dignidade do trabalho. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 59, out 2008. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5067>. Acesso em set 2017.
[5] PINTO, José Augusto Rodrigues. Tratado de Direito Material do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
[6] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6ª ed. – São Paulo: LTr, 2007.
[7] CAIRO JÚNIOR, J. Curso de direito processual do trabalho. 4ªed. – Salvador: JusPODIVM, 2011.
[8] SEBRAE Nacional. O que é e como funciona o capital de giro?. Disponível em:
<https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/o-que-e-e-como-funciona-o-capital-de-giro,a4c8e8da69133410VgnVCM1000003b74010aRCRD>. Acesso em: 09 set. 2017.
[9] INFOMoney. Micro e pequenas empresas empregam 52% dos profissionais formais do país. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2013/01/22/micro-e-pequenas-empresas-empregam-52-dos-profissionais-formais-do-pais.html>. Acesso em: 09 set. 2017.
[10] AMADAE, S. Prisoners of Reason. Nova York: Cambridge University Press, 2016.
 
Nota
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Maurício Cerqueira Lima, Promotor de Justiça do Estado da Bahia, com atribuições na 8ª Vara de Família de Salvador. Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Católica do Salvador – UCSal (1992). Especialização em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Universidade Jorge Amado – Unijorge. 2009. Concluinte de pós graduação em Filosofia pela Universidade Estácio de Sá. É escritor.


Informações Sobre o Autor

Mateus Ribeiro Lima

Acadêmico de Direito no Centro Universitário Jorge Amado


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