Negócios processuais atípicos: alcances e limites no CPC/2015

Resumo: Através do método bibliográfico, este artigo objetiva analisar o instituto dos negócios processuais atípicos no CPC-2015, a fim de especificar os seus alcances e limites.

Palavras-chave: Negócios processuais – Limites – Alcances – CPC-2015.

Abstract: Through literature method, this article aims to analyze the institute of the atypical procedural business on the CPC-2015 in order to specify its scopes and limits.

Keywords: Procedural business – Limits – Scopes – CPC/2015.

Sumário: Introdução. 1. Breve análise da teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda. 2. Da teoria dos fatos jurídicos processuais. 3. Dos negócios jurídicos processuais. 4. Dos negócios jurídicos processuais típicos. 4.2. Da calendarização processual. 5. Dos negócios processuais atípicos. 5.1. Negócios processuais atípicos e o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo. 6. A cláusula geral do art. 190 do CPC e o problema do objeto da negociação e suas condições de validade. 7. Condições subjetivas de validade. 7.1. Partes plenamente capazes. 7.2 A questão da ausência de manifesta situação de vulnerabilidade. 8. Dos limites aos negócios jurídicos processuais. Conclusão. Referências.

Introdução

Através do método bibliográfico, o presente artigo propõe-se a diagnosticar os alcances e limites dos negócios jurídicos processuais atípicos no âmbito do Código de Processo Civil de 2015. Conquanto recente, a regulamentação do tema vem sendo alvo de grandes debates doutrinários haja vista a ampliação do objeto das matérias negociáveis trazidas no bojo do art. 190 do CPC-2015, que alberga a cláusula geral de negociação processual, a qual se constitui o núcleo de nossa análise.  

O trabalho preocupa-se em tratar dos principais aspectos relacionados aos negócios processuais, a partir de uma perspectiva analítica embasada na teoria dos fatos jurídicos de Pontes de Miranda e outros posicionamentos de autores atuais. 

1. Breve análise da teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda

Para explicar o que é fato jurídico, Pontes de Miranda parte do pressuposto de que no mundo das experiências há fatos que são considerados como relevantes para o Direito e, portanto, merecem previsão normativa. Esses fatos, previstos de forma abstrata, compõem o que Pontes chama suporte fático(1954, p.74). Isso significa, de outra forma, que não haverá necessariamente coincidência entre o mundo dos fatos e o mundo jurídico. Qualquer norma jurídica possui como primeiro elemento constitutivo um suporte fático abstrato, o qual consubstancia o suporte fático concreto, isto é, a conduta ou evento natural regulamentado na norma considerado hábil a integrar o mundo jurídico (MIRANDA, 1970, t. 1, p. 21).

Nesse panorama, Pedro Henrique Nogueira (2013. p. 29) acrescenta que “a norma jurídica, enquanto proposição, prevê hipoteticamente fatos de possível ocorrência no mundo. A esses elementos da norma, isto é, o fato ou o conjunto de fatos previstos abstratamente, dá-se o nome de “suporte fático”. Nessa concepção teórica, os fatos jurídicos apenas nascem quando a norma jurídica incidir concretamente sobre o suporte fático, retirando os fatos do plano das experiências juridicamente irrelevantes e transportando-os para o mundo jurídico. A propósito, Marcos Bernardes de Mello reforça que a teoria ponteana nos conduz, de fato, à conclusão de que o pressuposto para a existência do fato jurídico é, exatamente, a incidência da norma (2000, p. 83-86). Em outras palavras, “a norma qualifica os fatos que se sucedem habitualmente no mundo e a eles emprega um valor, os qualificando, os adjetivando e os juridicizando” (LIMA, 2014, p. 8). Com o seu ingresso no mundo jurídico, o fato jurídico torna possível o nascimento de situações jurídicas que se desdobram em relações jurídicas (MELLO, 2014, p. 52), pois, “composto o fato jurídico, surgem, no mundo jurídico, os efeitos previstos em abstrato na norma” (NOGUEIRA, 2013, p.29).  

O suporte fático, supramencionado, pode ser simples ou complexo. Diz-se que ele é complexo quando composto por mais de um fato e em sendo complexo, como geralmente o é, será formado pelos elementos nucleares (cerne e elementos completantes), pelos elementos complementares e pelos elementos integrativos. Cada um desses elementos do suporte fático produzirá consequências nos planos da existência, validade e eficácia, também pensados por Pontes de Miranda. Em perfeita síntese da visão de Marcos Bernardes de Mello, Jaldemiro Ataíde (2015, p. 407), anota que:

“O suporte fático da norma jurídica é composto por (a) elementos nucleares, que, por serem considerados essenciais à sua incidência e à consequente criação do fato jurídico, constituem-se no cerne, cuja ausência ou deficiência, acarreta a inexistência do fato jurídico; (b) elementos completantes, que junto ao elemento cerne constituem o próprio suporte fático do fato, de modo que sua integral concreção no mundo é pressuposto necessário à existência do fato jurídico; (c) elementos complementares, não integram o núcleo do suporte fático, apenas o complementam (não completam) e se referem, exclusivamente, à perfeição de seus elementos, repercutindo apenas nos planos da validade e eficácia dos atos jurídicos stricto sensu e dos negócios jurídicos – fundados na vontade humana – e, (d) elementos integrativos, que também não compõem o suporte fático dos atos jurídicos stricto sensu e dos negócios jurídicos, sendo atos praticados por terceiros, em geral autoridade pública, que integram o ato jurídico, repercutindo apenas no plano da eficácia, a fim de que se irradie certo efeito que se adiciona à eficácia norma dos atos jurídicos stricto sensu e dos negócios jurídicos.”

O estudo do suporte fático ganha relevo não apenas porque por meio dele será possível saber a sorte do negócio jurídico processual em cada um dos planos, como observa Pedro Nogueira (2016, p. 176), mas, também, porque é com base nele que Pontes de Miranda classifica os fatos jurídicos – mais precisamente por meio do cerne do suporte fático:

“Esse critério, que tem indiscutível caráter científico, uma vez que se funda em dado invariável do fato jurídico (o elemento cerne do suporte fáctico hipotético), conduz a que se possa classificar qualquer de suas espécies com um grau de certeza praticamente absoluto. Basta conhecer a descrição normativa do suporte fáctico para que se possa identificar de qual espécie se trata”. (MELLO, 2014, p. 170).

Dessa forma, os fatos jurídicos podem ser divididos de acordo com o seu cerne: em conformidade ou desconformidade com o direito (i), e, na presença ou não de conduta humana no suporte fático (ii). O resultado a que chegamos é que os fatos jurídicos podem ser lícitos ou ilícitos, mas os conceitos de licitude e juridicidade são distintos, como acentua Paula Sarno Braga (2016, p. 4):

“Diz-se ser uma contradição lógica ter-se por jurídico um fato ilícito. Mas com isso confunde-se licitude com juridicidade. É jurídico tudo que, por sofrer incidência de uma norma jurídica, entra no mundo jurídico. Não há diferença ontológica entre lícito e ilícito, pois ambos são jurídicos – já que sofrem incidência de hipótese normativa -, o que há é uma diferença axiológica. Tanto que fato hoje tido por lícito amanhã pode não ser mais.”

 Os fatos lícitos podem ser fato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico e ato jurídico lato sensu sendo este último subdividido em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico. Os atos ilícitos, por sua vez, podem ser fatos ilícitos stricto sensu, atos-fatos ilícitos e atos ilícitos (NOGUEIRA, 2016. p.33). Em apertada síntese, pode-se dizer que no âmbito dos fatos jurídicos lato sensu, os fatos jurídicos stricto sensu são os que se originam da natureza e, ainda que em seu suporte fático haja a ocorrência de um ato humano, este se dá de forma acidental, indireta, a exemplo da morte, do nascimento, da idade. De outra sorte, atos jurídicos lato sensu e o ato-fato são os fatos jurídicos baseados no ato humano. A diferença entre esses dois últimos está em o direito considerar ou não relevante a vontade de praticar o ato. No ato-fato “ressalta-se a consequência fática do ato, o fato resultante, sem se dar maior significância à vontade em realizá-lo”, diferentemente do que ocorre com o ato jurídico lato sensu, onde a vontade é primordial (MELLO, 2014, p. 188).

Dentro da categoria dos atos jurídicos lato sensu localizamos os atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos. Nos primeiros, a vontade é considerada quanto ao aspecto prático do ato embora seus efeitos já sejam previamente definidos pela norma, não se exigindo a vontade da produção de um resultado, isso porque os seus efeitos já são necessários (BRAGA, 2016, p. 11). De acordo com Marcos Bernardes de Melo (2004, p. 159), o ato jurídico em sentido estrito é, portanto

“O fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fático manifestação ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas.”

Vale ressaltar que não é nossa finalidade abordar com detalhes a referida classificação, mas tão somente localizar o objeto do nosso trabalho (negócios jurídicos) dentro da já citada teoria. A vontade, nos negócios jurídicos, de modo diverso do que acontece nos atos jurídicos em sentido estrito, não é considerada apenas quanto ao aspecto prático do ato, como passaremos a demonstrar.

1.2. Do negócio jurídico na teoria ponteana

O negócio jurídico se encontra como espécie do gênero ato jurídico lato sensu (evidentemente no grupo dos atos em conformidade com o direito), ao lado do ato jurídico stricto sensu. As duas espécies, porém, não se confundem conquanto entre ambas existam semelhanças. Estando dentro de um grupo maior, os atos jurídicos lato sensu necessariamente decorrem da atuação humana. Ocorre que o ato jurídico stricto sensu tem sua eficácia predeterminada pela lei, de modo que a vontade de quem o pratica não pode alterar essa eficácia, salvo se a própria lei assim o permitir. A sua produção irradia os efeitos jurídicos albergados pela norma. Marcos Bernardes de Mello, revisitando a teoria de Pontes de Miranda, apresenta um exemplo esclarecedor sobre esse detalhe: o reconhecimento de filiação não resultante de casamento. A declaração de vontade de que a pessoa é filha do declarante produz os efeitos jurídicos desse reconhecimento, os quais são invariáveis e inexcluíveis pelo querer de quem reconhece (MELLO, 2014, p. 188). Diferentemente, com os negócios jurídicos a situação é diferente visto que nesses há outorga de liberdade para que os efeitos do ato sejam determinados e delimitados pela vontade humana. Segundo Marcos Bernardes de Mello, o negócio jurídico é

“O fato jurídico cujo elemento nuclear do suporte fático consiste em manifestação ou declaração de vontade, em relação à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de escolha de categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas, quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico”. (MELLO, 2014, p. 245)

Assim temos que o negócio jurídico possibilita a influência da vontade no resultado/consequência dos atos jurídicos, de modo a regular a sua amplitude, o surgimento, a permanência e a intensidade dos seus efeitos. Os negócios jurídicos, a propósito, podem ser regidos tanto por normas cogentes quanto por normas dispositivas. Quando disciplinado por normas cogentes, o ordenamento jurídico já lhes traz e delimita os efeitos permitindo aos sujeitos apenas a escolha da categoria jurídica em que se quer enquadrar o negócio. Quando regulado por normas dispositivas, se outorga liberdade ao sujeito para escolher tanto a categoria jurídica quanto os efeitos a serem irradiados (BRAGA, 2016, p. 12). Em todo caso, (i) os efeitos, ainda que não previstos devem ser, pelo menos, admitidos pelo sistema jurídico (MELLO, 2014, p. 237) e (ii) há efeitos invariáveis, pois necessariamente se produzem. Partamos, agora, para o plano processual.

2. Da teoria dos fatos jurídicos processuais

A teoria dos fatos jurídicos, como já ressaltado, não se restringe ao direito civil. Encontramos sua aplicabilidade também na esfera processual. “A questão está em saber quais seriam os elementos indispensáveis para se atribuir a determinado ato (ou fato, em sentido mais abrangente) o adjetivo “processual” (DIDIER e NOGUEIRA, 2011, p. 29). Pensada à luz da teoria ponteana, as bases da teoria do fato jurídico processual foram soerguidas por Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (2011, p. 31) nos seguintes termos:

“… os fatos jurídicos lato sensu processuais podem ser definidos como os eventos, abrangendo manifestações de vontade, condutas e fenômenos da natureza, contemporâneos a um procedimento a que se refiram, descritos em normas jurídicas processuais”.

Até chegar a esse conceito, os autores procuram diferenciar os fatos processuais e os atos ou fatos do processo estabelecendo que: enquanto esses últimos são os que compõem a cadeia de atos do procedimento, o ato processual deve abranger também os demais atos que interfiram de alguma forma no desenvolvimento da relação jurídica processual (DIDIER e NOGUEIRA, 2011, p. 30). Paula Sarno Braga, por sua vez, (2016, p. 20) considera que o fato jurídico processual é:

“O fato ou complexo de fatos que, juridicizado pela incidência de norma processual, é apto a produzir efeitos dentro do processo. Frise-se, o fato pode ser intraprocessual – ocorrendo no curso do procedimento – ou extraprocessual – ocorrendo fora do procedimento, tanto faz. O que importa é que recaia sobre ele hipótese normativa processual, juridicizando-o, e potencializando a produção de consequência jurídica no bojo de um processo”.

Embora não sejam uníssonos os conceitos estabelecidos, a grande questão parece girar em torno de uma definição inicial para os atos processuais, que muitos autores fazem levando em consideração basicamente quatro aspectos: a) a capacidade de produzir ou não efeitos no processo; b) os sujeitos da relação processual; c) o ato ter sido praticado no processo; ou, d) o ato praticado no processo e os sujeitos da relação processual (DIDIER JÚNIOR e NOGUEIRA, 2011, p. 29).

Pedro Nogueira, no entanto, bem observou que considerar na definição de ato processual apenas os sujeitos processuais e os efeitos do ato diretamente sobre a relação jurídica traduz uma incompletude do sistema. Seria impróprio descaracterizar um ato que, embora não modifique a relação jurídica processual propriamente dita, irradia consequências das mais relevantes para o processo. E mais, dizer que “o ato praticado pelos terceiros não teria caráter processual implicaria afastar a aplicação do regime jurídico dos atos processuais sobre eles”. Por sua vez, restringir o conceito de ato processual à sede endógena da relação processual, como o faz Satta não parece louvável, porquanto há atos que são preliminares ao processo e, não obstante, têm relevância exclusivamente processual, como ocorre com a procuração e a convenção de arbitragem (NOGUEIRA, 2016, pp. 50-52).

Com efeito, os fatos jurídicos processuais não se restringem aos atos processuais havidos no âmbito interno da relação processual, pois, tal qual o fato jurídico lato sensu na teoria de Pontes de Miranda, os fatos jurídicos processuais, de fato, abrangem também fenômenos da natureza. Para ser processual também necessária se faz a existência de um procedimento a que se refira o fato, ou seja, “pode-se dizer ser um elemento completante do núcleo do suporte fáctico do fato jurídico processual a existência de um procedimento a que se refira” (NOGUEIRA, p.43). O problema dessa concepção é que ela parece conceber o processo como algo ínsito ao procedimento, sem considerar o aspecto relacional do fenômeno processual. Para nós, o procedimento é que está inserido no âmbito das relações processuais e não o contrário. 

Porém, têm razão os autores citados acima, quando ponderam que não importa se o fato em questão seria de direito substancial ou de direito processual, porque nada impede que ele integre o suporte fático de normas jurídicas distintas (a exemplo do evento morte). Basta lembrarmos que a incidência da norma sobre o suporte fático acarretará o nascimento do fato jurídico com suas consequências jurídicas – e no caso da incidência da norma processual, o aparecimento do fato jurídico processual. Em outras palavras, “Não se pode pôr como obstáculo intransponível para a caracterização de um fato jurídico como “processual” a circunstância de estar ele contemplado por regras substanciais e poder vir a configurar, ao mesmo tempo, um fato jurídico de direito material” (DIDIER JÚNIOR e NOGUEIRA, 2011, p. 35).

Tal como faz Pontes de Miranda, em sua Teoria do Fato Jurídico, Didier e Nogueira, na Teoria do Fato jurídico Processual, classificaram os fatos jurídicos processuais de acordo com o núcleo do suporte fático, ou seja, o lastro teórico que arrima a sustentação dos últimos dois autores é, sem dúvida, a teoria de Pontes revisitada por Bernardes de Mello. A partir desse suporte teórico os autores contemporâneos aqui referidos situam os negócios jurídicos como espécie dos fatos processuais em sentido amplo, dispondo-os ao lado dos atos jurídicos processuais em sentido estrito.   

3. Dos negócios jurídicos processuais

Teixeira de Souza (1997, p. 193), em poucas linhas, traça uma das principais, senão a principal característica dos negócios jurídicos processuais, qual seja: “… a disponibilidade sobre os efeitos processuais que afere a admissibilidade dos negócios processuais”. Importa diferenciar os negócios processuais dos atos processuais em sentido estrito já que em ambos a vontade compõe o suporte fático. Ocorre que, diferentemente do que acontece nos negócios processuais, a vontade não atua na determinação dos efeitos nos atos processuais em sentido estrito, como adiantamos alhures. Nestes últimos, os efeitos irradiados são previstos pela lei, razão que justifica o fato de que a maioria dos atos processuais quedarem-se inseridos nessa classificação (BRAGA, 2016, p. 24).

Negócio jurídico processual, por seu turno, pode ser conceituado como “o fato jurídico voluntário em cujo suporte fático esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais” (DIDIER JÚNIOR e NOGUEIRA, p. 58). Logo, integram o suporte fático do negócio jurídico (i) a manifestação consciente de vontade visando o autorregramento de uma situação jurídica simples ou da eficácia de uma relação jurídica, (ii) a existência de um poder de determinação da categoria jurídica; e (iii) a existência de um processo a que se refira (ATAÍDE JÚNIOR, 2015, p. 408):

“Em outros termos, negócio jurídico processual é o ato jurídico por meio do qual as partes dispõem sobre matéria processual ou não, nos limites impostos pela norma, com reflexos no processo seja ele contemporâneo ou não à negociação. Sua aceitação, contudo, não é unânime a doutrina se divide de modo a negar ou reconhecer a existência dos negócios processuais.”  

Noutra ponta, os que entendem pela inexistência dos negócios processuais, em linhas gerais, lastreiam-se no argumento de que “os atos de vontade das partes produzem no processo apenas os efeitos ditados pela lei” (QUEIROZ, p. 694). No Brasil, essa posição é representada por alguns nomes de prestígio, como Cândido Rangel Dinamarco, Daniel Mitidiero e Alexandre Freitas Câmara. Dos fundamentos que embasam essa corrente doutrinária destacam-se: a oposição à incorporação de uma figura tipicamente privatista ao processo a qual funcionaria como uma ameaça à própria autonomia do direito processual quanto à disciplina das suas formas; o argumento de que os efeitos dos atos negociais celebrados fora do processo seriam sempre derivados da lei e não da própria autorregulação das partes; a dependência dos negócios processuais à intervenção do juiz; o enquadramento dos negócios processuais na categoria de fatos jurídicos (NOGUEIRA, p. 155).

Pois bem, é preciso ter em mente, como acentuou Paula Costa e Silva (2003, p.270), que “A expressão negócio processual pode induzir em erro se através dela se pretende, uma vez mais, afirmar que todos os efeitos induzidos por um ato processual devem ser abrangidos pela vontade do respectivo autor. Há efeitos do ato processual negocial que continuam a ser tabelados”. Contudo, não se pode negar que uma hermenêutica mais elástica sobre o âmbito permitido pelo art. 190 do CPC, marcada por um viés privatista livre de controle, poria o sistema processual num cenário de retrocesso histórico na medida em que nos remete à era do estado liberal, caracterizada pelo “laissez-faire” e “laissez-passer”, incompatível com a evolução histórica que nos põe na era do Estado de Direito Social. Por outro lado, isso não implica a conclusão no sentido de inexistência dos negócios processuais, sobretudo porque o próprio dispositivo permite claramente o controle judicial, o qual se apresenta como termômetro balizador dos limites da autonomia da vontade das partes sobre a disposição/alteração de regras relativas ao procedimento.

Em resumo, a nosso ver, a não aceitação dos negócios jurídicos processuais se faz principalmente em razão do aparente paradoxo entre a natureza pública das normas processuais e o conceito de negócio jurídico, já revisado. Ocorre que o âmbito de autorregulação no direito processual civil se diferencia justamente pela participação do Estado, de modo que a amplitude da celebração negocial não será a mesma do direito privado. Nessa senda, Robson Godinho (2013, p. 82) bem se posiciona sobre os limites da autonomia da vontade nesse tipo de ato negocial, vejamos:

“No campo processual, há limitações evidentes à autonomia privada, mas isso, por si só, não afeta a existência dessa categoria de fato jurídico. Todas as categorias convivem com limitações mais ou menos amplas, que são fundamentais para conferir seus contornos conceituais. O balizamento da autonomia molda o conceito de negócio jurídico processual, mas não o desnatura e sim o configura”.

É preciso respeitar princípios processuais considerados como inderrogáveis pela autorregulação das partes, por um lado, mas, por outro, é necessário cuidado para não se permitir uma atuação puramente discricionária do magistrado (GRECO, 2012, p. 28). Os limites sobre a disposição das matérias procedimentais serão traçados pela jurisprudência, a qual se guiará pelos lindes instituídos no parágrafo único do art. 190 do CPC, ou seja, assim limitados os negócios jurídicos processuais não só existem como são lícitos e proporcionam o reforço do princípio da cooperação já que as próprias partes participarão mais ativamente do processo.  

Os impactos dos negócios processuais hão de ser pensados sob uma perspectiva jurisdicional garantista e de legitimação da jurisdição, isto é, que a participação das partes confere à decisão final uma mais arraigada legitimidade. No entanto, o acordo em relação ao procedimento não implica acordo acerca da resolução do mérito da demanda. A propósito, Antônio do Passo Cabral (2014, p. 29) esclarece: “Nem sempre o desacordo a respeito dos direitos materiais representa também um desacordo a respeito de todas as posições processuais que as partes enfrentam no processo. Podemos concordar com algumas coisas a respeito do meio para resolver nosso conflito, ainda que, a respeito do conflito, a respeito do litígio, estejamos em desacordo”. Mas, a legitimação adviria porque as partes estiveram presentes na formação dos meios que nortearam o procedimento até a sentença (DUARTE, 2014, p. 23). Ademais, acrescenta Robson Godinho, que com os negócios jurídicos processuais proporciona-se “um processo efetivamente democrático, em que convivam os poderes do juiz e a autonomia das partes, sempre balizados pela conformação constitucional dos direitos fundamentais” (GODINHO, 2013, p.39).

Não bastasse a legitimidade que os negócios processuais recebem do Novo Código de Processo Civil, a sua celebração é perfeitamente admitida, tendo em vista que o conflito de interesses materiais não implica desinteresse pela colaboração na resolução do próprio conflito do qual os negócios se tornam instrumentos.

4. Dos negócios jurídicos processuais típicos

Os negócios jurídicos processuais, repise-se, não constituem inovação Código de Processo Civil de 2015. Os negócios processuais típicos são assim denominados porque para eles há autorização normativa específica. É bem verdade que em 1850, com o Regulamento nº 737, havia previsão de vários atos que poderiam ser enquadrados na categoria de negócios processuais e cuja previsão foi mantida posteriormente com o Código de Processo Civil de 1939 trazendo, por exemplo, a possibilidade de transação e a suspensão da instância por convenção das partes, como se deu, igualmente, com o CPC-1973 (NOGUEIRA, 2016. p. 140). A título de exemplos, constam como negócios processuais típicos a cláusula de eleição de foro, suspensão do processo e adiamento da audiência por vontade das partes, convenção para modificação dos prazos dilatórios, dentre outros.  

Mas essa ambiência em nada se compara com a nova sistemática instituída pelo CPC-2015, porquanto nele houve uma ampliação nos negócios processuais típicos dos quais são exemplo a redução de prazos peremptórios (art. 222, § 1º), a calendarização processual e a escolha consensual de peritos. Conquanto não seja objeto deste trabalho uma análise apurada acerca de cada espécie de negócio processual típicos, dada a importância e verdadeira inovação da calendarização processual, trataremos desse tema a seguir.

4.1. Da calendarização processual

No art. de 191 do CPC consta uma das mais relevantes atualizações normativas porque passou nosso sistema processual, vejamos:

“Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.

§1.º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.

§2.º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.”

Nessa modalidade de negociação processual o juiz participa efetivamente das deliberações, comprometendo-se a decidir e praticar atos processuais nos termos acordados. Como se percebe da letra do § 1º não só as partes, mas, também, o juiz resta vinculado ao que for disciplinado de forma espontânea. A possibilidade de estipulação do calendário processual evita, ao menos potencialmente, sucessivas intimações e pedidos de prorrogação de prazos dilatórios (NOGUEIRA, 2016. p. 243). De acordo com Tavares Júnior (2016, p. 08-09), ganha o juiz, pois não vai ser mais obrigado a adiar expedientes por falha do ato de intimação das partes; também ganham as partes que não se prejudicam com o adiamento da audiência, e também ganham os servidores e a própria máquina judiciária.

A proposta é de verdadeira otimização do procedimento. Havendo a dispensa da intimação depois de elaborado o calendário, a calendarização alcança seu principal objetivo. De nítidas influências francesa e italiana, a calendarização constitui negócio processual típico plurilateral já que participam dele juiz e partes e nunca pode ser imposto dado seu caráter negocial. É o que descreve Pedro Nogueira (NOGUEIRA, 2016, p. 244):

“A opção do CPC/2015, ao prescrever que “o juiz e as partes podem fixar calendário” foi clara no sentido de impor que a celebração de calendário exige a concordância das partes, que manifestam vontade concordando com a disposição temporal dos atos do procedimento. Não importa se a iniciativa da produção do cronograma proveio do juiz, do autor, do réu, até de um terceiro ou de ambos. Não se pode prescindir da concordância das partes.”

O mérito desse negócio processual está em concretizar o princípio da razoável duração do processo (art. 6º, NCPC) já que, por meio dele, é possível antever cronologicamente o momento da prática de todos os atos processuais subsequentes, incluindo o momento da prolação da sentença. Ademais, o Enunciado 299 do Fórum Permanente de Processualistas Civis considera, acertadamente, possível que: “O juiz pode designar audiência também (ou só) com objetivo de ajustar com as partes a fixação de calendário para fase de instrução e decisão”.

5. Dos negócios processuais atípicos

Os negócios processuais atípicos, que nasceram e se legitimaram com o artigo 190 do Novo Código de Processo Civil, encontram respaldo também no novo paradigma processual brasileiro: o princípio da cooperação. Nas palavras de Leonardo Cunha, “Consolidou-se a ideia de que o Estado democrático não se compraz com a edição de atos repentinos, inesperados, de qualquer dos seus órgãos, mormente daqueles destinados à aplicação do Direito” (CUNHA, 2014). Da leitura dos artigos 6º e 7º do NCPC resta claro que o modelo cooperativo foi o adotado. Portanto, exige-se muito mais uma comparticipação dos sujeitos processuais e, nessa esteira, os negócios processuais atípicos ocupam importante papel.

“Com efeito, quando a celebração do negócio jurídico estiver nos limites do propósito do Estado, que é resolver conflitos e afirmar o ordenamento jurídico, e for desejado e pactuado de forma livre pelos sujeitos parciais, a sua realização, ao contrário de confrontar o devido processo legal, é medida que o afirma e, mais do que isso, leva a um regime de colaboração entre os sujeitos processuais que reforça verdadeira corresponsabilidade no processo”. (MACEDO; PEIXOTO, 2015, p. 3).

Assim é que dentro de certos limites, que serão posteriormente estudados, às partes fica autorizada a celebração de negócios processuais atípicos. A atipicidade deriva exatamente da possibilidade de negócios que até então não encontram previsão na norma processual. Não havia antes norma geral permissiva para que as partes acordassem sobre um ato processual não especificamente autorizado (LIMA, 2014, p. 30). Portanto, o caso concreto é que levaria à necessidade desse negócio.

Os negócios processuais atípicos estão previstos como “resultado do legítimo exercício do poder de autorregramento da vontade pelos interessados” (NOGUEIRA, 2016. p. 242) e sobre os seus limites – foco de nosso estudo – discorreremos em tópico próprio.

5.1. Negócios processuais atípicos e o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo

Embora, como já visto, ainda haja resistência em considerar o autorregramento da vontade no processo, não é possível sua existência diante da clareza da regra constante do art. 190 do CPC. Saber se vai, ou não continuar a prevalecer a concepção de que a vontade seria irrelevante para o processo é uma questão que será resolvida pela jurisprudência. sem dúvida, durante a vigência do CPC anterior prevalecia a ideia de que para se conferir efetividade e segurança jurídica ao processo a vontade deveria sucumbir à forma (CUNHA, 2016, p. 11).

A natureza jurídica de direito público das normas processuais encontra fundamento no fato de que essas normas se propõem a conduzir uma relação jurídica existente entre o Estado e os particulares (PONTE, 2015, p. 307). Embora a amplitude dessa liberdade seja mais restrita no Direito Público, e, de fato, deve isso assim permanecer até porque envolve o exercício de uma função pública (a jurisdição), a liberdade no processo, apesar de poder ser balizada pelo juiz, existe e os negócios processuais atípicos são o mais atual exemplo de sua valorização. E á dela que deriva o subprincípio do autorregramento da vontade no processo (DIDIER JÚNIOR, 2015, p.1).

Nesse sentido, tem razão Godinho quando reconhece que se deve “… trabalhar com a autonomia das partes não mais no sentido privatístico clássico, mas, sim, dentro de uma perspectiva constitucional e de uma teoria dos direitos fundamentais que autoriza e ao mesmo tempo impõe limites às manifestações de vontade” (GODINHO, 2014, p. 87). Porém, embora os negócios jurídicos processuais atípicos possam ensejar maior efetividade à prestação jurisdicional, o autorregramento da vontade deve ser ponderado para que não tenhamos negócios jurídicos inválidos ou contrários aos princípios do Estado de Direito Social, isto é, que contrariem princípios de ordem pública ou regras ou princípios constitucionais, vetores esses que limitam a alteração procedimental em razão do autorregramento da vontade.

6. A cláusula geral do art. 190 do CPC e o problema do objeto da negociação e suas condições de validade

 Não apenas o objeto da negociação, mas também os próprios requisitos de validade expressos no artigo 190 do CPC já apresentam, por si sós, alguns dos principais limites dos negócios jurídicos processuais. Estes, desde que satisfeitos os requisitos, poderão versar tanto sobre mudanças no procedimento de modo a alterá-lo às especificidades da causa (i), quanto sobre ônus, faculdades e deveres processuais (ii).

O primeiro objeto da negociação é, portanto, o acordo sobre o procedimento, pois como anota Lima “A flexibilização procedimental surge como mecanismo para suavizar a rigidez do sistema, de modo que o ato processual é praticado diversamente da fórmula legislativa” (LIMA, 2016, p. 62). Embora o demandante já estivesse autorizado a escolher o procedimento quando do ajuizamento da ação pelo Código de Processo Civil de 1973, desde que não se tratasse de procedimento especial não fungível, com a introdução do art. 190 do atual Código de Processo Civil, essa opção também pode ser feita conjuntamente, ou seja, entre autor e réu. Mais ainda, permitir-lhes-á adequar o rito ao caso concreto, evidentemente dentro de limites traçados pelo próprio sistema (NOGUEIRA, 2016, p. 227).

É que, como bem percebeu Marcelo Dias Ponte “a natureza da demanda pode exigir a acolhida de tutelas processuais peculiares, bem como a prática de atos processuais específicos, cuja forma e tempo não possuem antecedentes normativos dentro da legislação” (PONTE, 2015, p. 312). Nesse enfoque percebemos avanço considerável da Ciência Processual haja vista preocupação com a construção de um processo civil democrático, já influenciada pelo princípio da cooperação das partes no processo, a fim de que a técnica processual seja manejada como forma de servir ao direito material e aos fins do processo (DUARTE, 2014, p. 22).

À Conclusão diversa, porém, chegam aqueles que veem no acordo procedimental verdadeira insegurança jurídica, tendo em vista que às partes não estaria garantida a previsibilidade do procedimento e, portanto, o poder de antever e regrar a forma dos atos processuais. A possibilidade de possível desordem procedimental é, porém, factível, posto que cada procedimento poderá ser singularizado, entretanto vale ponderar que o escopo da adequação procedimental não é outro senão a dispensa da realização de atos desnecessários além da maior aceitação, pelas partes, da decisão final proferida já que direcionada por constantes diálogos. Ademais, nada obsta que o magistrado atue como agente regulador para limitar a eficácia de negócios processuais que contrariem os princípios constitucionais e as normas processuais fundamentais. Cremos que entre o privatismo absoluto e o publicismo exagerado, é possível enxergar um meio termo no qual os negócios processuais possam sobreviver eficazmente. A vontade das partes não anula os limites de ordem pública, nem o contrário é verdadeiro. Nesse sentido Bedaque (1990, p. 94) conclui que

“A absoluta ausência de requisitos legais quanto ao modo de ser do ato processual e do próprio procedimento leva à desordem e se apresenta como obstáculo ao escopo do processo. Por outro lado o formalismo cego e desmedido acaba levando às mesmas consequências, pois impede o desenvolvimento normal da atividade jurisdicional”.  

Ainda em sede de acordos sobre o procedimento, Pedro Nogueira propõe uma classificação baseada no dinamismo ou não do negócio processual. A esse despeito, se o acordo se restringe à escolha de um procedimento já previsto em lei, os negócios serão estáticos; mas se porventura as partes ajustarem o procedimento alterando seus prazos, os meios de prova, por exemplo, a fim de adaptá-lo à causa, os acordos serão dito dinâmicos. (NOGUEIRA, 2016. p. 228). Perceba-se que, em verdade, com a permissão para a celebração de acordos sobre o procedimento houve notória preocupação do legislador em efetivar o princípio da adequação formal do procedimento (DIDIER JÚNIOR, 2016, p. 5).

Ante a autorização para celebrar acordos sobre o procedimento, é possível que as partes atuem em cooperação com o juiz de modo a adequá-lo às especificidades da causa. Não entendemos que a flexibilidade procedimental configure violação ao devido processo legal, desde que as garantias constitucionais do processo restem intactas. O segundo objeto da cláusula geral corresponde às convenções sobre ônus, faculdades e deveres processuais. Com o novo Código de Processo Civil se conferiu às partes a possiblidade de dispor, de acordo com sua conveniência, as situações que lhe conferem vantagens e sobre os seus ônus no processo (NOGUEIRA, 2016. p. 228).

De acordo com o que dispõe o art. 190 do Código de Processo Civil, ora em análise, os acordos poderão ser celebrados antes ou durante o processo. Porém, de acordo com a definição que adotamos, apenas aqueles que se refiram a um procedimento, sendo-lhe contemporâneo, são chamados de negócios jurídicos processuais, como defende Pedro Henrique Nogueira (2016, p. 232).

As condições de validade dos negócios jurídicos processuais envolvem tanto as relativas a qualquer negócio jurídico, previstas no Código Civil quanto as condições de validade específicas trazidas pelo art. 190. Isso significa que além da exigência agente capaz, objeto lícito possível e determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei, será necessário satisfazer as condições especificamente consideradas para os negócios jurídicos qualificados como processuais. A exigência de que o direito material em questão admita autocomposição, a proibição de inserções abusivas em contratos de adesão, bem como o respeito aos limites estabelecidos pelas normas cogentes são condições objetivas estabelecidas pelo artigo em análise.

Importa considerar que, por força do parágrafo único do artigo 190 ao juiz incube o controle desses requisitos seja de ofício seja a requerimento, além do que, para que se conclua pela invalidade do ato há necessidade de efetivo prejuízo, senão vejamos o Enunciado 16 do III FPPC-Rio:

“O controle dos requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo.”

Ao nos depararmos com os negócios jurídicos processuais atípicos, certamente nos questionaremos se todo e qualquer direito pode admitir negociação. Para delimitar a amplitude daqueles negócios, o dispositivo em comento previu em seu “caput” que apenas é lícito às partes estipular acordos quando o processo versar sobre direitos que admitam autocomposição. A questão que nos parece desafiar, então, é apontar quais seriam tais direitos. Afinal, os direitos indisponíveis poderiam ser objeto dos negócios processuais e nesse sentido, a Fazenda Pública e o Ministério Público poderiam atuar como sujeitos nesses negócios?

 Sobre o tema tem razão Pedro Nogueira, quando observa que os direitos que admitem autocomposição trazem consigo noção mais ampla que a dos direitos patrimoniais disponíveis, objeto da arbitragem (2016, p. 232). De fato, não há vedação à negociação processual sobre direito pelo fato exclusivo de ser indisponível. Reforça o raciocínio a opinião de Hercília Lima, para quem “Ao usar a expressão autocomposição, o legislador teve possivelmente a intenção de não restringir a negociação processual aos direitos disponíveis” (LIMA, 2016, p. 89). Ademais, Diogo Rezende (2014, p. 177) também adere a esse entendimento:

“A impossibilidade de disposição do direito material não afeta, em regra a possibilidade de disposição de direito processual. O interesse em disputa pode ser indisponível, mas as partes permanecem livres a contratarem sobre alteração de foro, redistribuição de ônus da prova, escolha conjunta de perito, suspensão do processo, alteração da data de audiência etc. Do mesmo modo, conquanto seja disponível o direito material em jogo, é vedada a convenção processual que, por exemplo, diminua o prazo de contestação para dois dias, uma vez que acarreta mitigação exacerbada ao direito de defesa do réu e, conseguintemente, afeta direito processual indisponível.”

Conclusão direta desse posicionamento seria a possibilidade de que tanto o Ministério Público quanto a Fazenda Pública poderiam sim atuar como sujeitos nos negócios processuais. Outro argumento igualmente aceitável seria o de que, sua atuação não implicaria necessariamente um prejuízo em sua situação jurídica até porque o negócio processual poderia beneficiar o ente público. A propósito, no VI Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis – VI FPPC, o enunciado de nº 256 consente que: “A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual”. Na mesma senda, o enunciado de nº 135 do FPPC reafirma a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais sobre direitos indisponíveis: “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.

Visto que a indisponibilidade dos direitos não configura óbice aos negócios processuais, é relevante saber se o mesmo raciocínio pode ser aplicado para legitimar que o Ministério Público figure na negociação. E a resposta é positiva se embasada no Enunciado 253 “O Ministério Público pode celebrar negócio processual quando atua como parte”.

Porém, não se pode perder de vista que o interesse defendido pela Fazenda Pública afeta toda a sociedade, razão que confere ao juiz um poder-dever fiscalizador no controle de negócios processuais perpetrados pela Fazenda Pública, para poder negar eficácia a dispositivos que subtraiam prerrogativas processuais do ente público capazes de acarretar-lhe prejuízos processuais, ainda que estes não tenham se verificado em concreto. Não se pode admitir como susceptível à negociação processual cláusula que suprima a remessa necessária e outras prerrogativas das quais possa advir prejuízo ao ente público.

7. Condições subjetivas de validade

7.1. Partes plenamente capazes

Ainda como requisito de validade cabe analisar quais seriam os sujeitos aptos a figurar na negociação processual. As partes mencionadas pelo art. 190 do novo Código de Processo Civil são as consideradas plenamente capazes. A regra para a capacidade processual é estabelecida pelos arts. 70 a 73 do CPC pelos quais toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo.

Porém, no tocante à capacidade impende considerarmos que o Estatuto da Pessoa com Deficiência reza em seu art. 6º que a pessoa com deficiência é capaz, tendo inclusive alterado os arts. 3º e 4º do CC. Ao comentar o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Hercília Lima (2016, p. 90) pondera que

“…embora a norma tenha propósitos inclusivos, especialmente quando se trata de acesso à justiça, reconhecemos que a questão se torna polêmica quando envolve a possibilidade de as pessoas com deficiência celebrarem negócios processuais, especialmente quando envolver atos dispositivos, eis a margem de autorregramento, em regra, aumenta.”

Sem embargo, não se pode negar que no concernente à incapacidade absoluta, o art. 3º do Código Civil apenas considera como incapaz o menor de dezesseis anos. Por seu turno, as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade passaram a ser consideradas pela Lei nº 13.146/2015, que alterou a redação do art. 4º do CC, como relativamente incapazes. Assim, e considerando a possibilidade prevista no art. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, pelo qual “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”, nada obsta que, uma vez garantido o procedimento de “decisão apoiada”, previsto no § 2º do mesmo dispositivo, a pessoa nessa condição possa celebrar negócio processual, se observada a devida assistência.

7.2 A questão da ausência de manifesta situação de vulnerabilidade

A situação de vulnerabilidade deve atrelar-se à suscetibilidade em sentido amplo sendo a hipossuficiência uma de suas espécies, ao lado de outros possíveis óbices como de ordem de saúde, cultural ou até de ausência de representação jurídica dentre outros, como enumera Fernanda Tartuce. Em órbita processual, essa vulnerabilidade consiste em um impedimento a que o litigante pratique atos processuais em razão de uma limitação, que deve ser aferida de forma objetiva, incluindo-se, no contexto de celebração do negócio processual, o nível de informação das partes (TARTUCE, 2016, p. 2). Assim, a validade do negócio processual é condicionada a esse requisito negativo, isto é, um dos celebrantes não pode quedar-se em situação de vulnerabilidade, à medida que tal situação afeta a própria autonomia da vontade. Nesse sentido, Fernanda Tartuce (2016, p. 4) destaca:

“Tratando-se de convenção sobre normas de processo, pressupõe-se que as partes estejam em condições razoáveis de igualdade para negociar em termos de informação técnica, organização e poder econômico. Caso contrário, a disposição sobre o procedimento pode ser manipulada pela parte mais poderosa com vistas a se livrar de ônus e deveres, dificultando a atuação da parte mais fraca.”

A autora destaca que a vulnerabilidade em questão se caracteriza exatamente pelo desequilíbrio e, portanto, quebra da isonomia que expõe um litigante a clara situação de desvantagem em relação ao outro (2016, p. 4), devendo ser esta inferida no momento em que o negócio é celebrado. Por sua vez, a adjetivação “manifesta”, chama atenção à evidente desproporcionalidade de condições de deliberação entre as partes. Nesse toar, o enunciado de nº 18 do FPPC aponta que a inexistência da assistência técnico-jurídica constitui uma das formas dessa manifesta situação de vulnerabilidade: “Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistência técnico-jurídica” (NOGUEIRA. 2016. p. 236).

8. Dos limites aos negócios jurídicos processuais

A valorização dada pelo CPC-2015 à vontade das partes no processo demonstra a busca por mecanismos que ponham em prática o princípio da cooperação processual, estampado em seu art. 6º, o qual “tem o propósito de atribuir a todos a responsabilidade pela formação dos atos processuais e, por conseguinte, pela construção da decisão judicial” (LIMA, 2016, p. 56). Nessa esteira, ante a cláusula geral que consagra os negócios jurídicos processuais atípicos é, no mínimo, natural considerar sobre os limites de tais negócios. Isso porque embora reconhecida parcela de autonomia para que as partes estabeleçam negócios jurídicos processuais, a atuação dessa autonomia não se mostra tão ampla como acontece no direito privado. O desafio, portanto, é estabelecer uma sintonia entre a autonomia da vontade e o publicismo garantista do processo.

Ponderar sobre os limites é uma discussão que está aquém de uma conclusão pacífica e sobre a qual doutrina e jurisprudência terão de se preocupar. Que os limites devem existir não resta dúvida. Sua ausência levaria a um processo degenerativo em decorrência do arbítrio praticado por qualquer dos atores processuais (LIMA, 2016, p. 62). Não configura objeto deste trabalho uma sistematização desses limites haja vista sequer existir ainda uma unanimidade. Todavia, faremos um diagnóstico de alguns aspectos importantes.

Os limites aos negócios processuais foi tema abordado no II Encontro de Jovens Processualistas, que em muito contribuiu para definir, ao menos inicialmente, alguns limites aos negócios processuais. Destacamos os enunciados que têm relação com o tema, alguns já vistos nesse trabalho:

“Enunciado nº 06: “O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação”;

Enunciado nº 16: “O controle dos requisitos objetivos e subjetivos da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade sem prejuízo”;

Enunciado nº 17: “As partes podem, no negócio processual, estabelecer outros deveres e sanções para o caso do descumprimento da convenção”;

Enunciado nº 18: “Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistência técnico-jurídica”.

Enunciado nº 19: “São admissíveis os seguintes negócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória”

Enunciado nº 20: “Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros: acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da 1ª instância”;

Enunciado nº 21: “São admissíveis os seguintes negócios, dentre outros: acordo para realização de sustentação oral, acordo para ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado da lide convencional, convenção sobre prova, redução de prazos processuais”.

Além desses, no III Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis foram aprovados os seguintes enunciados pertinentes ao tema, que também orientam o alcance dos negócios processuais atípicos ou lhes trazem regra específica:

“Enunciado nº 132: “Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 191”.

Enunciado nº 133: “Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do caput do art. 191 não dependem de homologação judicial”.

Enunciado nº 134: “Negócio jurídico processual pode ser invalidado parcialmente”.

Enunciado nº 135: “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.

Na doutrina brasileira quem primeiro tratou do tema foi Leonardo Greco (2007, p. 11), que fez uma análise dos limites à liberdade de disposição das partes nos seguintes termos:

“A definição dos limites entre os poderes do juiz e a autonomia das partes está diretamente vinculada a três fatores: a) à disponibilidade do próprio direito material posto em juízo; b) ao respeito ao equilíbrio entre as partes e à paridade de armas, para que uma delas em razão de atos de disposição seus ou de seu adversário, não se beneficie de sua particular posição de vantagem em relação à outra quanto ao direito de acesso aos meios de ação e de defesa; e c) à preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do processo no Estado Democrático de Direito.”

Embora não seja procedente a opinião do autor no que diz respeito à disponibilidade do próprio direito material enquanto limite (no estudo do art. 190 vimos que a noção de direito indisponível dá lugar a direitos que admitam autocomposição), não resta qualquer dúvida que os negócios processuais serão inválidos na precisa medida em que acarretarem quebra do princípio da isonomia processual ou quando dispuserem em sentido contrário aos postulados do Estado Democrático de Direito, como, por exemplo, uma disposição que considere válida uma prova obtida por meios ilícitos.

Ademais, parece-nos irreparáveis as observações de Leonardo Greco no sentido de que os princípios e garantias fundamentais do processo também constituem limites obstativos à validade dos negócios processuais, pelo que são inválidos os que mitiguem princípios já sedimentados no Direito Processual, como os princípios do juiz natural, da razoável duração do processo e da vedação de prova ilícita. A esses princípios e garantias fundamentais do processo Leonardo Greco (2007, p. 11) intitula “ordem pública processual” enquanto Pedro Nogueira prefere chamar “formalismo processual” (NOGUEIRA, 2016, p. 161). Essa ordem pública processual seria formada por um “conjunto de requisitos dos atos processuais, impostos de modo imperativo para assegurar a proteção de interesse público precisamente determinado” (GRECO, 2007, p. 11). Figuram como limites porque “o seu conteúdo transcende a esfera do espaço de privado das partes e atinge o interesse público. Desse modo, entendemos que são inegociáveis matérias como: segredo de justiça; competência absoluta; supressão de instância; a exclusão do Ministério Público como fiscal da lei etc” (LIMA, 2016, p. 90).

Daniel Amorim (2016, p. 329) de igual modo, entende que as normas fundamentais do processo se constituem limites aos negócios processuais. Sem reparos, a observação do autor, porquanto não podem incluir-se no âmbito dos negócios processuais válidos os que disponham contra o princípio da boa-fé processual, vejamos: “… não parece crível que as partes possam acordar pelo afastamento de seus deveres de boa-fé e lealdade processual, transformando o processo em verdadeira “terra de ninguém”, obrigando o juiz a aceitar todo tipo de barbaridades sem poder coibir ou sancionar tal comportamento”. Ressalta, ainda, que não é possível convencionar sobre o princípio da publicidade, criando novas espécies de segredo de justiça.

Quanto a esse específico tópico não podemos concordar, pois conquanto a publicidade seja regra processual constitucional a lei infraconstitucional permite-lhe exceções, como se observa do art. 189 do CPC. Ora, se as partes podem estabelecer cláusula de confidencialidade na arbitragem (art. 189, IV do CPC), podem igualmente acertar que o processo no qual litigam perante o poder judiciário também não possa tramitar em segredo de justiça.

Leonardo Greco (2007, p. 11) chega a pontuar princípios considerados indisponíveis pelas partes:

“Entre esses princípios indisponíveis, porque impostos de modo absoluto, apontei então: a independência, a imparcialidade e a competência absoluta do juiz; a capacidade das partes; a liberdade de acesso à tutela jurisdicional em igualdade de condições por todos os cidadãos (igualdade de oportunidades e de meios de defesa); um procedimento previsível, eqüitativo, contraditório e público; a concorrência das condições da ação; a delimitação do objeto litigioso; o respeito ao princípio da iniciativa das partes e ao princípio da congruência; a conservação do conteúdo dos atos processuais; a possibilidade de ampla e oportuna utilização de todos os meios de defesa, inclusive a defesa técnica e a autodefesa; a intervenção do Ministério Público nas causas que versam sobre direitos indisponíveis, as de curador especial ou de curador à lide; o controle da legalidade e causalidade das decisões judiciais através da fundamentação.”

Embora igualmente reconheçamos a ordem pública processual enquanto limite, vale refletir que esse conceito se mostra um tanto indeterminado e genérico. Perceba-se que classificar algo como ordem pública é conferir a esse grupo regime jurídico especial. A questão é: o que define ou agrega esse predicado? O critério seria de ordem legislativa ou estrutural? (GODINHO, 2013, p. 175- 176). Infelizmente não temos a resposta exata a esses questionamentos, os quais certamente provocarão grandes debates doutrinários.

Pedro Nogueira também se posiciona a respeito dos limites aos Negócios Processuais. Entende que as próprias normas processuais configuram limites, pois sua aplicação é inafastável pelos interessados – as normas cogentes processuais (NOGUEIRA, 2016. p. 160).  Daniel Amorim conceitua as normas cogentes como aquelas “imposta pela lei aos sujeitos processuais, sendo irrelevante sua vontade no caso concreto” (NEVES, 2016, p. 331). Sob o argumento de violação às normas cogentes é que se negaria validade aos negócios que, por exemplo, afastassem a participação do Ministério Público quando a lei exigisse sua presença ou que dispusessem sobre condições da ação, bem como quando tratassem de modificar competência absoluta (CUNHA, 2014, p. 30). “Com relação às condições da ação, parece inegável que o interesse de agir não pode ser objeto de convenção entre as partes, porque não se pode obrigar o Poder Judiciário a desenvolver um processo inútil e/ou desnecessário” (NEVES, 2016, p. 332).

Filiamo-nos à ideia de que “a manifestação de vontade, isoladamente, não tem valor jurídico; só o terá se estiver de acordo com a Constituição, as leis, a ordem pública e, como sustenta a maior parte da doutrina, conforme a moral e os bons costumes” (BORGES, 2005, p. 54). Nessa perspectiva, Marcos Bernardes de Mello parece trazer um conceito mais completo em relação às normas que limitam a autonomia da vontade. Ele ensina que não há para as normas cogentes, impositivas e proibitivas permissivos à essa autonomia:

“Em verdade, quando há proibição ou há imposição normativa de certa conduta, cogentemente, não se admite que as pessoas possam agir de modo contrário à norma, o que implica dizer que fazer o que está proibido ou furtar-se ao que impõe constitui, necessariamente, infração da norma jurídica. Não há possibilidade d se agir conforme ao direito desatendendo-se à cogência” (ATAÍDE JÚNIOR. 2015, p. 411)

É possível reconhecer também como limite aos negócios processuais a participação do Judiciário, representante do Poder Público, enquanto sujeito processual e cuja vontade deve ser levada em consideração. Não é possível, por exemplo, que as partes estipulem acordos que vinculem o juiz a admitir provas ilícitas ou que imponham que ele se abstenha de reconhecer alguma irregularidade, aliás, ao contrário do que se possa concluir, o juiz permanece atuando ativamente do processo.

“Como se vê, embora prestigiado o poder de autorregramento da vontade das partes, os limites estabelecidos nas normas, os princípios constitucionais e a filosofia do processo cooperativo, exigirão do juiz uma atuação proativa (não autoritária) para que as partes possam exercer de maneira democrática a negociação processual. O papel do juiz nos acordos processuais parece ser a de garantidor dos direitos fundamentais das partes para permitir que as deliberações sejam inclusivas e livres de coações” (LIMA, 2016, p. 93).

Nesse mesmo sentido, Cassio Scarpinella Bueno (2016, p. 2017) registra:

“Por tal razão, ao menos por ora, não vejo como aceitar convenções processuais sobre: (i) deveres- poderes do magistrado ou sobre deveres regentes na atuação das partes e de seus procuradores; (ii) sobre a força probante dos meios de prova; (iii) sobre os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo e/ou do exercício do direito de ação; (iv) sobre as hipóteses (e o regime) da tutela provisória; (v) sobre as formas e técnicas de cumprimento da sentença, inclusive o provisório, e as de execução; (vi) sobre a coisa julgada; (vii) sobre o número de recursos cabíveis ou interponíveis e seu respectiva regime jurídico; ou (viii) sobre as hipóteses de reincindibilidade.”

Leonardo Cunha também vislumbra a própria lei como limite, noutras palavras, a impossibilidade de que um negócio jurídico processual trate de matéria reservada à lei. Ressaltamos uma vez mais que, embora se flexibilize, por exemplo, os prazos, não obstante serem matéria reservada à lei, certas matérias gozam de proteção específica haja vista integrarem norma cogente. Um exemplo se presta a esclarecer: um negócio jurídico processual não poderia, em sua visão, ser celebrado para criar um novo recurso (CUNHA, 2014, p. 30).

Oportuno relembrar que além dos limites ora elencados, os requisitos de validade dos negócios jurídicos além daqueles trazidos pelo já estudado artigo 190 do NCPC constituem expressos limites ao autorregramento da vontade na celebração dos negócios processuais. De outro modo, os requisitos gerais de validade do negócio jurídico, a saber, agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não defesa em lei figuram como requisitos sem os quais a vontade não será validada.

Por tudo que foi visto, vale concluir que a discussão sobre o autorregramento da vontade e os seus limites se mostra necessária. Os limites parecem, na verdade, ser elementos importantes para o equilíbrio entre a liberdade e direito público. Por isso mesmo é coerente o dizer de José Roberto dos Santos Bedaque (2011, p. 435-437):

“Liberdade não significa insegurança para as partes, nem arbítrio do juiz. Representa, simplesmente inexistência de rigidez e previsão legal de padrões flexíveis, segundo as especificidades da situação sem que isso implique violação às garantias do devido processo constitucional.”

6. Conclusão

De fato, a liberdade é um dos principais e mais antigos direitos fundamentais (DIDIER JÚNIOR, 2015, p.1). É nessa perspectiva que o NCPC inaugura a cláusula geral de negociação que inova ao validar os negócios jurídicos processuais atípicos, conferindo às partes maior participação na construção do Processo.

Em síntese, o art. 190 do CPC permite que as partes, plenamente capazes bem como a pessoa com deficiência devidamente assistida, possam estabelecer mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa ou convencionarem sobre os ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, desde que o façam em comum acordo, podendo ser antes ou durante o processo, com observância dos princípios e regras constitucionais e normas processuais fundamentais.

A natureza pública do Processo não é obstáculo à validade e à eficácia dos negócios processuais. Aliás, podemos dizer que os negócios processuais ocupam papel de destaque para a implementação do princípio da cooperação e efetividade processuais. Os limites aos negócios processuais são pensados nesse contexto. Entendemos que os limites cumprem um papel importante enquanto niveladores da atuação das partes e da própria amplitude dos negócios processuais, pois balizam quais os negócios que são, ou não, admitidos no processo. Figuram como elementos que compatibilizam a vontade das partes à natureza pública do direito processual isso porque, se por um lado, autorizam-se as partes a celebrarem negócios processuais, por outro, norteiam e obstam a extensão dessa vontade.

 

Referências  
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Informações Sobre os Autores

Alexandre Freire Pimentel

Professor do PPGD da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professor da Faculdade de Direito do Recife (FDR-UFPE). Pós-doutorado (Universidade de Salamanca – Espanha, com bolsa da CAPES). Doutor e Mestre (FDR-UFPE). Advogado (1989-1991). Promotor de Justiça (1991-1992). Juiz de Direito Titular da 29ª Vara Cível do Recife – TJPE. Diretor da Escola Judicial Eleitoral do TRE-PE. Desembargador Eleitoral do TRE-PE. Membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (ANNEP). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

Natália Lobo Mota

Acadêmica da UNICAP


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