A dupla desvantagem da mulher com deficiência no mercado de trabalho

Resumo: O presente artigo busca relacionar a condição de ser humano com deficiência e ser humano do gênero feminino com a acessibilidade ao mercado de trabalho.Seriam tais condições uma dupla desvantagem para aquelas que se encontram em ambos os grupos? Para isso, analisaremos um breve histórico da luta das pessoas com deficiência e a mudança no uso da terminologia histórica do termo, a fim de explicar porque o mercado trata tanto as mulheres como as pessoas com deficiência com uma postura assistencialista e como reserva de mão de obra. Quanto à condição de mulher no mercado de trabalho, uma questão é a padronização do corpo ideal e o quanto isso afeta mais as mulheres. Por fim, busca-se aqui refletir acerca da eficácia da lei de cotas e se sua atuação tem garantido oportunidades e rendimentos igualitários para homens e mulheres.

Palavras-chave: mulher, deficiência, trabalho, Lei de Cotas.

1. Considerações Preliminares

O presente artigo pretende analisar a condição da mulher com deficiência no mercado de trabalho brasileiro.Tal condição é significativa, visto que, a própria Organização das Nações Unidas reconhece que alguns grupos apresentamnecessidade de maior proteção por estarem em condição de desvantagem. No texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (preâmbulo, alínea q) a Convenção menciona que mulheres estão mais expostas aos riscos de “sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração”. Analisaremos se essa dupla desvantagem também é traduzida na inserção das mulheres com deficiência no mercado de trabalho.Estudar a realidade destas mulheres já empregadas, bem como das que procuram emprego, é relevante do ponto de vista social, econômico e jurídico.

Social, pois trata de dois grupos historicamente discriminados, aos quais foram e são negadosdireitos e questionada suas habilidades. Mulheres e pessoas com deficiência foram ao longo dos séculos impedidas de participarem ativamente da vida social e do mercado de trabalho. Tais aspectos deixam marcas significativas até hoje, por exemplo, mencionamos a dificuldade em encontrar profissionais com deficiência com experiência. Nunca foi dada a esse grupo a chance de se inserir no mercado.

Econômico, pois o Brasil possui mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, das quais a maioria (53,58%) mulheres.[1]Tais cidadãs devem ser incluídas no mercado de trabalho e constituir mão de obra economicamente ativa. Ademais, deficiência e pobreza estão profundamente relacionadas. Estima-se que na América Latina e Caribe hábem mais 50 milhões de pessoas com deficiência e dessas 82% vivem na pobreza[2]. As classes sociais menos favorecidas têm maior chance de adquirir uma deficiência ao longo de suas vidas. A deficiência é associada a altas taxas de analfabetismo, alimentação inadequada, falta de acesso à água potável, grau de imunidade baixo, doenças (e tratamento inadequado) e condições de trabalho perigosas e insalubres. Acredita-se que a deficiência pode resultar em pobreza, considerando que as pessoas com deficiência sofrem discriminação e marginalização.

Por fim, jurídico, pois precisamos analisar a aplicação da Lei de Cotas e sua eficácia na inclusão de pessoas com deficiências no mercado, bem como, se esta está gerando oportunidades igualitárias entre homens e mulheres. Percebemos, muitas vezes, que a conquista do direito acontece apenas formalmente, sem que haja efetividade material da norma jurídica. A lei de cotas é rígida e mesmo assim não é cumprida. Apenas 0,7 % dos profissionais empregados são pessoas com deficiência[3]. Quando cumprida muitas vezes é de forma desigual. Percebe-se hoje que a severidade das deficiências é um critério utilizado pelos empregadores, contratando apenas profissionais com deficiências leves, desse modo, quanto mais severa a deficiência menor a chance de inserção no mercado de trabalho.

O objetivo, neste trabalho,consisteem interpretar os dados quantitativos à luz do tema para responder se as mulheres com deficiência encontram maiores dificuldades de inserção no mercado de trabalho, quando comparadas aos homens com deficiência.
 Nossa hipótese inicial é que as condições de mulher e pessoa com deficiência, quando somadas formam uma dupla desvantagem que torna o acesso ao mercado desigual entre homens e mulheres.

2. A definição de deficiência e os aspectos históricos na luta das pessoas com deficiência: O que é deficiência?

Nesse artigo optamospor tratar os dois temas em conjunto, pois o próprio conceito de deficiência vem se modificando.É necessário esclarecer a diferença entre doença e deficiência.Embora algumas deficiências sejam frutos de uma doença, nem todo corpo deficiente é um corpo doente. Alguém que precisou amputar as pernas por conta de um acidente de carro é uma pessoa com deficiência, porém não possui nenhuma doença. Há várias definições para deficiência.

Até a década de 60 o conceito de deficiência era puramente biomédico. Os estudos sobre o tema eram limitados ao tratamento médico e psicológico, além da reabilitação. O corpo deficiente era visto como uma variação do “normal”, do “saudável”. Sobre esse aspecto, assinala Diniz (2007 p. 4):

“A concepção de deficiência como uma variação do normal da espécie humana foi uma criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo fora da norma.”¹

A questão da normatização do corpo, definindo o que é “normal” por seguir ou não um padrão é até hoje uma das fontes do preconceito e estigmas sofridos por pessoas com deficiência.

Reconhece-se, porém, que o cenáriomudou bastante desde os anos 60. Nessa época, pessoas com deficiência eram internadas em instituições e centros com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior e sem nenhuma independência. O objetivo era, na maioria das vezes, tirá-las dos olhos da sociedade ou o de reabilitá-las para retornar à família ou meio social como uma pessoa “normal”.

Se hoje temos dificuldades com temas como acessibilidade e inclusão, pode-seter uma breve noção do que era ser deficiente em um mundo que não estava preocupado em incluí-lo. A pessoa com deficiência estava encarcerada no próprio corpo e não contava com nenhum esforço do meio social para tornar sua situação menos difícil.
A década de 70 é crucial na redefinição do conceito de deficiência e na luta por direitos desse grupo.

Relata Diniz (2007, p 7) que o sociólogo Paulo Hunt, do Reino Unido,  escreveu uma carta ao jornal inglês The Guardian, em 20 de setembro de 1972, na qual criticava as condições vividas pelas pessoas com deficiência isoladas nessas instituições e cujossentimentos, pensamentos e opiniões eram desconsiderados. Propunha a criação de um grupo de pessoas que se encontravam nessa situação, objetivandolevar ideias e reivindicações sobre o tema ao Parlamento. Esta carta representou o início de uma verdadeira revolução na luta das pessoas com deficiência. A carta recebeu diversas respostas de apoio. Após quatro anos, foi formada a UPIAS (Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação).

E a mesma autora destaca que a UPIAS foi uma instituição importantíssima, sobretudo porquedeu voz às pessoas com deficiência e crucial na definição do seu modelo social. Seus membros revolucionaram o modo de perceber a deficiência ao retirar a questão do aspecto puramente biomédico. (ibid)

Enquanto o modelo biomédico cataloga e estuda a deficiência sem relacioná-la com o meio social, este entende que muitas das limitações sofridas pelas pessoas com deficiência ocorrem devido ao fato dea sociedade estar pouco ou nada adaptada para conviver com a diferença e promover a inclusão. Diniz (2007 p. 4) esclarece a diferença dos modelos:

“O modelo médico de compreensão da deficiência assim pode catalogar um corpo cego: alguém que não enxerga ou alguém a quem falta a visão – esse é um fato biológico. No entanto, o modelo social da deficiência vai além: a experiência dadesigualdade pela cegueira só se manifesta em uma sociedade pouco sensível à diversidade de estilos de vida”. ²

E acrescenta Diniz (2007 p.5):

“Nessa guinada acadêmica, deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.”

Surge assim um contraponto em que se questiona se as lesões produzem a deficiência ou se esta última é sinônima das primeiras.

“Se para o modelo médico o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo. Houve, portanto, uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo médico e o social: para o primeiro, a deficiência era resultado da lesão, ao passo que, para o segundo, ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão. Para o modelo médico, lesão levava à deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência.”(Diniz, 2007, p. 11.)

Essa nova definição foi revolucionária, pois retirava do indivíduo (a visão da “tragédia pessoal”) ou do acaso a responsabilidade pela deficiência ao considerar que a deficiência era um resultado de discriminação social e que não era uma questão puramente médica, mas também política, econômica, e sociológica:

“O modelo social definia a deficiência não como uma desigualdade natural, mas como uma opressão exercida sobre o corpo deficiente. Ou seja, o tema da deficiência não deveria ser matéria exclusiva dos saberes biomédicos, mas principalmente de ações políticas e de intervenção do Estado.” (DINIZ, 2007, p.9).

Por 20 anos o modelo social elaborado pela UPIAS foi unânime e livre de críticas. As críticas vieram nos anos de 1990 a 2000, elaboradas principalmente por teóricas feministas. A UPIAS foi criada por homens, em sua maioria de classe média alta e com lesões físicas. É notável que os deficientes físicos sofram bem menos preconceito e estigma do que os mentais, por exemplo. A defesa de que a retirada de barreiras levaria a independência não atendia a todos os tipos de deficiência. Nem toda pessoa com deficiência poderá se tornar independente (por exemplo: pessoas com paralisia cerebral):

“O argumento do modelo social era o de que a eliminação das barreiras permitiria que os deficientes demonstrassem sua capacidade e potencialidade produtiva. Essa ideia foi duramente criticada pelas feministas, pois era insensível à diversidade de experiências da deficiência. A sobrevalorização da independência é um ideal perverso para muitos deficientes incapazes de vivê-lo. Há deficientes que jamais terão habilidades para a independência ou capacidade para o trabalho, não importa o quanto as barreiras sejam eliminadas”. (DINIZ, 2007, p.28) 6

Surge aqui uma questão crucial que foi posta de lado no primeiro modelo: o cuidado.  A inserção de pessoas não deficientes no debate veio por meio das cuidadoras. Existem pessoas com deficiência que necessitam do cuidado permanente como condição de sobrevivência. As relações sociais também foram tema do segundo modelo.

“As feministas cuidadoras não apenas passaram a ser uma voz legítima nos estudos sobre deficiência, mas principalmente colocaram a figura da cuidadora no centro do debate sobre justiça e deficiência, denunciando o viés de gênero no liberalismo político. Há desigualdades de poder no campo da deficiência que não serão resolvidas por ajustes arquitetônicos. Apenas princípios da ordem das obrigações morais, como o respeito aos direitos humanos, serão capazes de proteger a vulnerabilidade e a dependência experimentadas por muitos deficientes. A proposta feminista do cuidado diz respeito a relações assimétricas extremas, como é o caso da atenção aos deficientes graves.* Erroneamente supõe-se que o vínculo estabelecido pelo cuidado seja sempre temporário: há pessoas que necessitam do cuidado como condição de sobrevivência. Por isso, ele é uma demanda de justiça fundamental.” (DINIZ, 2007, p.30)

Além disso, o segundo modelo trata de questões de gênero, etnia, orientação sexual e idade. Em alguns casos, a pessoa além de sofrer o estigma da deficiência, ainda sofre com outros tipos de preconceito, por exemplo, ser mulher e deficiente.

Por fim, foram as feministas que mostraram que, para além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade.9 Ser uma mulher deficiente ou ser uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social da deficiência. Para as teóricas feministas da segunda geração, aqueles primeiros teóricos eram membros da elite dos deficientes, e suas análises reproduziam sua inserção de gênero e classe na sociedade. (DINIZ, 2007, p. 28.)

Reconhecer que nem toda pessoa com deficiência é capaz de se tornar independente mesmo com a retirada de barreiras, reconhecer a interdependência nas relações e inserir as questões de cuidado e cuidadoras formamas inovaçõesrepresentativas da segunda geração do modelo social.

Embora reconheçamos a contribuição trazida pelo modelo social,não trabalharemos com a divisão entre lesão e deficiência, mas sim, optamos pelos termos empregados pelaONU, quais sejam, deficiência, incapacidade e impedimento, bem como o conceito de desvantagem para tratar das questões sociais. [4]

Para a ONU deficiência é “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.” Incapacidade trata-se de “toda restrição ou falta (devido a uma deficiência) da capacidade de realizar uma atividade na forma ou na medida em que se considera normal a um ser humano”. O impedimento é “a perda ou limitação das oportunidades de participar da vida da comunidade em igualdade de condições com os demais.”O conceito de desvantagem é mais abrangente que o de impedimento pois não apenas pessoas com deficiência podem vivenciar a desvantagem. Grupos minoritários como mulheres, idosos, e minorias raciais sofrem também desvantagem (por isso a hipótese aqui apresentada de que ser mulher e deficiente é uma dupla desvantagem na inserção no mercado de trabalho). Além de outros aspectos que podem causar desvantagem, como por exemplo, ser portadora de HIV ou ter uma deformidade facial que o torne fora dos padrões de beleza e normatividade da sociedade. Isso ocorre porque a desvantagem é principalmente uma questão de estigma e discriminação.

No Brasil, a luta pelos direitos das pessoas com deficiência vem sendo positivada no Direito e exteriorizando seus efeitos através de leis, porém não podemos afirmar que os direitos adquiridos vêm sendo respeitados e cumpridos por todos. Conforme assinalado por Araújo (2013),

“Socialmente, soa como uma conquista histórica e extremamente significativa o fato de indivíduos com deficiência passarem a ter direitos incluídos em vários trechos da Carta Política […] Enquanto as pessoas com deficiência, os movimentos representativos destas pessoas e setores do Ministério Público, das Defensorias Públicas, intelectuais, etc. comemoram, o processo de inclusão pela legislação vai se consolidando formalmente, sem que tais prescrições levadas à condições de normas positivas venham, em muitas situações, a se traduzir em alterações substanciais na realidade prática da vida das pessoas com deficiência”.( P.10)

Por conta dessa relação com o direito materializado em leis, ao tratarmos da reserva de cargos em empresas privadas, temos por base o conceito de deficiência utilizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego que por sua vez, funda-se nas definições contidas nas Convenções da Guatemala e Sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes da Organização Internacional do Trabalho (OIT).Esta última trata por pessoa deficiente “todas aquelas cujas possibilidades de obter ou conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada.” Já a Convenção da Guatemala acolhe o entendimento de que a deficiência é “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais a vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.”

3. A mulher com deficiência e o mercado de trabalho

A pessoa, especialmente a mulhercom deficiência, tiveram um acesso tardio ao mercado de trabalho formal.Á mulher, por muitos séculos ficou relegado a função reprodutiva. O sexo feminino era tido como frágil e dependente de proteção do chefe da família (normalmente pai ou marido). Sua formação visava à construção de uma boa esposa, dona de casa e mãe (bordado, costura, culinária, administração do lar, etc.). Raríssimas as mulheres que eram, quando muito, alfabetizadas. Não tinham direito a propriedade, sua herança era passada ao marido para que esse administrasse.

Entre osséculosXVIII e XIX, a mulher passa a ingressar no mercado de trabalho.Com o fim da escravidão e a introdução de uma nova mão de obra no Brasil ─ os imigrantes ─ além de escravos libertos, mas sem nenhuma qualificação e com um forte preconceito racial da sociedade da época, passaram a existir famílias extremamente pobres. Devido a tal situação, as mulheres e as crianças passam também a trabalhar tanto na lavoura, quanto nas novas fábricas que vem surgindo no país, para compor a renda familiar, não de forma igualitária com o homem, mas sua mão de obra vista como complementar, de baixo custo e com pouca ou nenhuma qualificação.O capitalismo via a mulher como uma reserva de mão de obra: barata e com poucas reivindicações. As guerras também têm grande impacto no mercado de trabalho, visto que, grande parte dos homens em idade produtiva estava na guerra. Além disso, muitos voltavam com ferimentos de guerra e incapazes de exercer suas antigas funções. Ironicamente, o período das duas Grandes Guerras foram ao mesmo tempo o que mais gerou pessoas com deficiências e ao mesmo tempo, o período em que a sociedade começa a aceitar a mulher trabalhando, à medida que faltava mão de obra.  Além dessas, algumas outras conquistas deram a oportunidade da mulher assumir o controle da própria vida. Podemos citar o direito a educação igualitária e o surgimento dos métodos contraceptivos (dando-lhe o direito de escolha de quando e se quer ser mãe).

Conforme já destacamos, até os anos 1970, as pessoas com deficiência não contavamcom qualquer independência em sua vida.Logo, a condição da mulher com deficiência era duplamente desigual. Se por um lado como mulher foi lhe negado acesso à educação e ao trabalho por séculos, por ser tida como “frágil” e “necessitar de proteção”, por outro estava em um corpo que era considerado “anormal”, “doente”, e inadequado para o meio social, comumente institucionalizado pela sociedade da época, onde o costume era a retirada dos deficientes do convívio social. Tal estigma ainda é agravado pela visão da sociedade que coloca um padrão aceitável no corpo feminino. A mulher deve ser bela, de formas perfeitas, atrativa, e, para parte da sociedade, um corpo deficiente não se enquadra nesse padrão, o que agrava o preconceito. No mercado de trabalho onde se é comum pedir “boa aparência”, tal idealização do corpo feminino novamente coloca a mulher com deficiência em desvantagem. Essa característica própria da mulher com deficiência éexplicada:

“No caso das mulheres, é recorrente na literatura feminista o argumento que evidencia a “dupla desvantagem” com que vivem as mulheres com deficiência em relação a participação social, direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho e renda. Ao se constituírem mutuamente e se retroalimentarem, os efeitos do duplo estigma potencializam a exclusão das mulheres com deficiência, processo que se complexifica ainda mais quando cruzado com outras categorias como raça/etnia e classe. De todo modo, oque se quer ressaltar aqui é que, se tendemos hoje a falar de masculinidades e feminilidades, é preciso ressaltar a deficiência como componente do espectro de possibilidades dessas posições de gênero plurais.” (MELLO, e NUERNBERG, 2012, P 641)

Ao analisarmos a efetividade da Lei de Cotas, procuraremos demonstrar como essa dupla desvantagem da mulher com deficiência se reflete hoje no mercado de trabalho.

4. A Lei de Cotas e as pessoas com deficiência

Devido à existência do preconceito contra a pessoa com deficiência se verificar de várias formas,sua inserção no mercado de trabalho somente tem se efetivado através de leis e políticas públicas. Acredita-se que a pessoa com deficiência é um ser incapaz de exercer tarefas profissionais, dando a estas um tratamento assistencialista ao invés de criar serviços de avaliação e capitação.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 23 reconhece que“toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho e a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 7º, proíbe a discriminação na remuneração e nos critérios de admissão dos trabalhadores com deficiência e, em seu artigo 37, VIII, prevê a reserva de percentual de vagas no setor público exclusivamente. Já no setor privado, foi o plano infraconstitucional, com política de cotas instituída em 1991, que tratou da reserva de vagas, sendo atualmente o principal mecanismo de inserção trabalhista disponível às pessoas portadoras de deficiência. Como disposto no artigo 93 da Lei 8213 de 24 de Julho, o número de funcionários de uma empresa privada determinará o piso percentual obrigatório para a contratação de beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência (para a Lei, a deficiência é considerada quando ocorre a perda ou anormalidade da estrutura ou de sua função psicológica ou fisiológica). Determina o referido artigo, in verbis:

“Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I – até 200 empregados……………….2%;

II – de 201 a 500……………………….3%;

 III – de 501 a 1.000……………………4%;

IV – de 1.001 em diante. ……………5%.

§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

§ 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.”

Entretanto, apesar da lei possuir plena vigência, de ser de conhecimento geral e de, sobretudo, gerar penalidades para aqueles que não a cumprirem, na prática os seus efeitos estão muito abaixo da própria previsão legal.

A principal crítica feita pelos empresários obrigados a contratar portadores de deficiência é que normalmente são estes pessoas de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, queacarretam custos elevados para a adaptação necessária na estrutura física das organizações, a fim de que os espaços possam ser adequados ao seu trabalho e deslocamento. No entanto, no que diz respeito à falta de qualificação profissional, o Ministério do Trabalho e Emprego (2007) explica que:

“A equipe que efetua a seleção deve estar preparada para viabilizar a contratação deste seguimento. Principalmente, precisa ter claro que as exigências a serem feitas devem estar adequadas às peculiaridades que caracterizam as pessoas com deficiência. Se isto não ocorrer, vai ser exigido um perfil de candidato sem qualquer tipo de limitação”. (p. 23).

O sobredito órgão, sobre a baixa  escolaridade ou até a falta dela para as pessoas com deficiência, reconhece como uma realidade, ponderando entretanto que

“Às pessoas com deficiência também na foram dadas iguais oportunidades de acesso à escolarização. Entretanto, muitas vezes, apesar de não terem a certificação, tiveram acesso ao conhecimento através do apoio da família ou da comunidade local. De outro lado, muitas vezes é exigido, de forma generalizada, um patamar de escolaridade que não é compatível com as exigências de fato para o exercício das funções”. (p. 23)

A partir disso, é possível aferir que a criação da Lei de Cotas foi feita para viabilizar o acesso de um grupo de pessoas que não têm meios nem condições de competir em igualdade por uma vaga profissional com as demais, cabendo as empresas privadas tornarem possível tal acesso.

5. Alguns números da Política de Inclusão Profissional

A análise do impacto da Lei de Cotas e de seus resultados é feita pelo banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), instaurada pelo Decreto nº 76.900 de 1975, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que em 2007, pela primeira vez, incorporou a questão da deficiência em seu questionário. Suas informações são prestadas anualmente e obrigatoriamente pelos estabelecimentos brasileiros, inclusive aqueles sem registro de vínculo empregatício no exercício. Em suma, é a RAIS um censo anual do mercado de trabalho formal.

Segundo a RAIS, de 2007 a 2011, o número de vínculos empregatícios ativos só aumentou, enquanto que o de portadores de deficiência ativos no mercado de trabalho, entre ligeiras elevações e diminuições, se estagnou em menos de 0,70% do total dos vínculos empregatícios. Os deficientes físicos representam a maior parte e os portadores de deficiência mental e deficiências múltiplas a menor. Quanto aos rendimentos médios das pessoas com deficiência, não houve, durante esses anos, grandes acréscimos, pelo contrário, a RAIS 2011 mostra que os rendimentos médios caíram em 7,29%.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre pessoas sem deficiência, a participação dos homens na população economicamente ativaé 34% maior que a das mulheres. Em pessoas com deficiência tal diferençacorresponde a 30%.

Na RAIS 2011, dos 325,3 mil vínculos declarados como de pessoas com deficiência, 213,8 mil eram do sexo masculino e 111,4 mil do feminino, em uma proporção de 65, 74% homens e 34,26 % mulheres. Quanto aos rendimentos médios, em todas as modalidades de deficiência o homem apresenta maior rendimento que as mulheres. Tais taxas variam de 58,34% para pessoas com deficiência auditiva até 90,17% para pessoas com deficiência intelectual.

Ainda que a participação dos homens com deficiência no mercado de trabalho seja 30% superior à das mulheres em igual condição, revelando discrepância menor que entre os trabalhadores sem deficiência (34%), as demais comparações aparentemente indicam que ser mulher e deficiente caracteriza dupla desvantagem no mercado de trabalho brasileiro.Ademais,a Lei de Cotas não adquiriu a efetividade esperada quando de sua elaboração, não logrando assegurar nem 1/5 dopercentual previsto no art. 93 do respectivo texto.As mulheres com deficiência, se comparadas às mulheres sem deficiência, dentro do seu respectivo grupo, chegam a perceber 90% menos em relação aos homens deficientes.

6. Considerações Finais
Até aqui, tudo o que foi escrito tem por finalidade chamar atenção para aspectos históricos e culturais que marcam significativamente a construção da atual era de direitos formalizados e pouco substancializados. Este trabalho procurou descrever um pouco da história da formação deste movimento e da realidade em números enquanto consequência da inclusão formal.

Este conjunto de condições marcado por um forte descompasso entre a norma jurídica e sua aceitação social tem motivado discussões intermináveis sobre os caminhos da política de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Para as mulheres, a condição de deficiente traz consequências, na maioria dos casos, mais graves do que para os homens, visto que aquelas, em muitos países, inclusive no Brasil, ainda se encontram em acentuada posição de desvantagem. As mulheres com deficiência suportam, simultaneamente, os reflexos da histórica discriminação pelo simples fato de ser mulher, assim como convivem com toda a carga discriminatória em decorrência da deficiência. Quando duas, três ou maiscondições ensejadoras de preconceitos e discriminação se reúnem em uma só pessoa, falamos em dupla, tripla ou múltipla desvantagem, o que equivale ao conceito de Barton (1996 apud Pastore, 2000) de “opressão simultânea.

No Brasil, visando dar fim a esta mazela, foi promulgada em 1991 a Lei de Cotas, que reserva para as pessoas com deficiência 2% a 5% das vagas disponíveis nas empresas privadas com 100 ou mais empregados. Obviamente, não será a mera criação de uma lei a solução de um problema que vem se agravando há anos, entretanto, apesar de a Lei de Cotas ainda estar longe de atingir o seu objetivo, não há como negar que foi ela um fator decisivo para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho.

A condição da mulher com deficiência, verificados os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) assim como outros tantos dados estatísticos nos permitem concluir que é momento da ciência jurídica questionar a própria política inclusiva legal vigente, com a finalidade de refletir sobre sua efetividade em relação às questões de gênero. Se as pessoas com deficiência, de uma forma geral, convivem com uma realidade de exclusão, entre as pessoas com deficiência, as mulheres enfrentam o drama da preterição por sua simples condição feminina.

Referências
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BARTON, Len. Disability and Society: Emerging Issues and Insigi don: Longman, 1996. apud PASTORE, José. Oportunidades de Trabalho para Deficientes. São Paulo: LTR, 2000.
BRASIL. Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência.
BRASIL. Decreto legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.
BRASIL. LEI Nº 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
DINIZ, Debora. O que é deficiência?. Brasília: Editora Brasiliense, 2007.
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MELO, Anahi Guedes De; NUERNBERG, Adriano Henrique. Gênero e deficiência: interseções e perspectivas. Revista Estudos Femininos.vol.20. Florianópolis: 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ref/v20n3/03.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.
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Notas:
[1] Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Publicados no Censo 2010.

[2]Só o Brasil, no último Censo (2010) já detectou a existência de mais de 45 milhões. Esses dados foram estimados no Programa Mundial de Ação da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1981 e têm por finalidade apenas ajudar a descrever a intrínseca relação entre deficiência e pobreza.

[3] Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2012)

[4]Estas distinções podem ser melhor estudadas no Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência das Nações Unidas de 1981, publicado também pelo Governo Brasileiro em 1997.


Informações Sobre os Autores

Carolina Silva de Andrade

Acadêmica de Direito na Universidade Veiga de Almeida

Josemar Figueiredo Araújo

Doutorando e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Bacharel em direito e advogado militante, atua como professor de Direito Público


A dupla desvantagem da mulher com deficiência no mercado de trabalho

Resumo: O presente artigo busca relacionar a condição de ser humano com deficiência e ser humano do gênero feminino com a acessibilidade ao mercado de trabalho.Seriam tais condições uma dupla desvantagem para aquelas que se encontram em ambos os grupos? Para isso, analisaremos um breve histórico da luta das pessoas com deficiência e a mudança no uso da terminologia histórica do termo, a fim de explicar porque o mercado trata tanto as mulheres como as pessoas com deficiência com uma postura assistencialista e como reserva de mão de obra. Quanto à condição de mulher no mercado de trabalho, uma questão é a padronização do corpo ideal e o quanto isso afeta mais as mulheres. Por fim, busca-se aqui refletir acerca da eficácia da lei de cotas e se sua atuação tem garantido oportunidades e rendimentos igualitários para homens e mulheres.

Palavras-chave: mulher, deficiência, trabalho, Lei de Cotas.

1. Considerações Preliminares

O presente artigo pretende analisar a condição da mulher com deficiência no mercado de trabalho brasileiro.Tal condição é significativa, visto que, a própria Organização das Nações Unidas reconhece que alguns grupos apresentamnecessidade de maior proteção por estarem em condição de desvantagem. No texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (preâmbulo, alínea q) a Convenção menciona que mulheres estão mais expostas aos riscos de “sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração”. Analisaremos se essa dupla desvantagem também é traduzida na inserção das mulheres com deficiência no mercado de trabalho.Estudar a realidade destas mulheres já empregadas, bem como das que procuram emprego, é relevante do ponto de vista social, econômico e jurídico.

Social, pois trata de dois grupos historicamente discriminados, aos quais foram e são negadosdireitos e questionada suas habilidades. Mulheres e pessoas com deficiência foram ao longo dos séculos impedidas de participarem ativamente da vida social e do mercado de trabalho. Tais aspectos deixam marcas significativas até hoje, por exemplo, mencionamos a dificuldade em encontrar profissionais com deficiência com experiência. Nunca foi dada a esse grupo a chance de se inserir no mercado.

Econômico, pois o Brasil possui mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, das quais a maioria (53,58%) mulheres.[1]Tais cidadãs devem ser incluídas no mercado de trabalho e constituir mão de obra economicamente ativa. Ademais, deficiência e pobreza estão profundamente relacionadas. Estima-se que na América Latina e Caribe hábem mais 50 milhões de pessoas com deficiência e dessas 82% vivem na pobreza[2]. As classes sociais menos favorecidas têm maior chance de adquirir uma deficiência ao longo de suas vidas. A deficiência é associada a altas taxas de analfabetismo, alimentação inadequada, falta de acesso à água potável, grau de imunidade baixo, doenças (e tratamento inadequado) e condições de trabalho perigosas e insalubres. Acredita-se que a deficiência pode resultar em pobreza, considerando que as pessoas com deficiência sofrem discriminação e marginalização.

Por fim, jurídico, pois precisamos analisar a aplicação da Lei de Cotas e sua eficácia na inclusão de pessoas com deficiências no mercado, bem como, se esta está gerando oportunidades igualitárias entre homens e mulheres. Percebemos, muitas vezes, que a conquista do direito acontece apenas formalmente, sem que haja efetividade material da norma jurídica. A lei de cotas é rígida e mesmo assim não é cumprida. Apenas 0,7 % dos profissionais empregados são pessoas com deficiência[3]. Quando cumprida muitas vezes é de forma desigual. Percebe-se hoje que a severidade das deficiências é um critério utilizado pelos empregadores, contratando apenas profissionais com deficiências leves, desse modo, quanto mais severa a deficiência menor a chance de inserção no mercado de trabalho.

O objetivo, neste trabalho,consisteem interpretar os dados quantitativos à luz do tema para responder se as mulheres com deficiência encontram maiores dificuldades de inserção no mercado de trabalho, quando comparadas aos homens com deficiência.
 Nossa hipótese inicial é que as condições de mulher e pessoa com deficiência, quando somadas formam uma dupla desvantagem que torna o acesso ao mercado desigual entre homens e mulheres.

2. A definição de deficiência e os aspectos históricos na luta das pessoas com deficiência: O que é deficiência?

Nesse artigo optamospor tratar os dois temas em conjunto, pois o próprio conceito de deficiência vem se modificando.É necessário esclarecer a diferença entre doença e deficiência.Embora algumas deficiências sejam frutos de uma doença, nem todo corpo deficiente é um corpo doente. Alguém que precisou amputar as pernas por conta de um acidente de carro é uma pessoa com deficiência, porém não possui nenhuma doença. Há várias definições para deficiência.

Até a década de 60 o conceito de deficiência era puramente biomédico. Os estudos sobre o tema eram limitados ao tratamento médico e psicológico, além da reabilitação. O corpo deficiente era visto como uma variação do “normal”, do “saudável”. Sobre esse aspecto, assinala Diniz(2007 p. 4):

“A concepção de deficiência como uma variação do normal da espécie humana foi uma criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo fora da norma.”¹

A questão da normatização do corpo, definindo o que é “normal” por seguir ou não um padrão é até hoje uma das fontes do preconceito e estigmas sofridos por pessoas com deficiência.

Reconhece-se, porém, que o cenáriomudou bastante desde os anos 60. Nessa época, pessoas com deficiência eram internadas em instituições e centros com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior e sem nenhuma independência. O objetivo era, na maioria das vezes, tirá-las dos olhos da sociedade ou o de reabilitá-las para retornar à família ou meio social como uma pessoa “normal”.

Se hoje temos dificuldades com temas como acessibilidade e inclusão, pode-seter uma breve noção do que era ser deficiente em um mundo que não estava preocupado em incluí-lo. A pessoa com deficiência estava encarcerada no próprio corpo e não contava com nenhum esforço do meio social para tornar sua situação menos difícil.
A década de 70 é crucial na redefinição do conceito de deficiência e na luta por direitos desse grupo.

Relata Diniz (2007, p 7) que o sociólogo Paulo Hunt, do Reino Unido,  escreveu uma carta ao jornal inglês The Guardian, em 20 de setembro de 1972, na qual criticava as condições vividas pelas pessoas com deficiência isoladas nessas instituições e cujossentimentos, pensamentos e opiniões eram desconsiderados. Propunha a criação de um grupo de pessoas que se encontravam nessa situação, objetivandolevar ideias e reivindicações sobre o tema ao Parlamento. Esta carta representou o início de uma verdadeira revolução na luta das pessoas com deficiência. A carta recebeu diversas respostas de apoio. Após quatro anos, foi formada a UPIAS (Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação).

E a mesma autora destaca que a UPIAS foi uma instituição importantíssima, sobretudo porquedeu voz às pessoas com deficiência e crucial na definição do seu modelo social. Seus membros revolucionaram o modo de perceber a deficiência ao retirar a questão do aspecto puramente biomédico. (ibid)

Enquanto o modelo biomédico cataloga e estuda a deficiência sem relacioná-la com o meio social, este entende que muitas das limitações sofridas pelas pessoas com deficiência ocorrem devido ao fato dea sociedade estar pouco ou nada adaptada para conviver com a diferença e promover a inclusão. Diniz (2007 p. 4) esclarece a diferença dos modelos:

“O modelo médico de compreensão da deficiência assim pode catalogar um corpo cego: alguém que não enxerga ou alguém a quem falta a visão – esse é um fato biológico. No entanto, o modelo social da deficiência vai além: a experiência dadesigualdade pela cegueira só se manifesta em uma sociedade pouco sensível à diversidade de estilos de vida”. ²

E acrescenta Diniz (2007 p.5):

“Nessa guinada acadêmica, deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.”

Surge assim um contraponto em que se questiona se as lesões produzem a deficiência ou se esta última é sinônima das primeiras.

“Se para o modelo médico o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo. Houve, portanto, uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo médico e o social: para o primeiro, a deficiência era resultado da lesão, ao passo que, para o segundo, ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão. Para o modelo médico, lesão levava à deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência.”(Diniz, 2007, p. 11.)

Essa nova definição foi revolucionária, pois retirava do indivíduo (a visão da “tragédia pessoal”) ou do acaso a responsabilidade pela deficiência ao considerar que a deficiência era um resultado de discriminação social e que não era uma questão puramente médica, mas também política, econômica, e sociológica:

“O modelo social definia a deficiência não como uma desigualdade natural, mas como uma opressão exercida sobre o corpo deficiente. Ou seja, o tema da deficiência não deveria ser matéria exclusiva dos saberes biomédicos, mas principalmente de ações políticas e de intervenção do Estado.” (DINIZ, 2007, p.9).

Por 20 anos o modelo social elaborado pela UPIAS foi unânime e livre de críticas. As críticas vieram nos anos de 1990 a 2000, elaboradas principalmente por teóricas feministas. A UPIAS foi criada por homens, em sua maioria de classe média alta e com lesões físicas. É notável que os deficientes físicos sofram bem menos preconceito e estigma do que os mentais, por exemplo. A defesa de que a retirada de barreiras levaria a independência não atendia a todos os tipos de deficiência. Nem toda pessoa com deficiência poderá se tornar independente (por exemplo: pessoas com paralisia cerebral):

“O argumento do modelo social era o de que a eliminação das barreiras permitiria que os deficientes demonstrassem sua capacidade e potencialidade produtiva. Essa ideia foi duramente criticada pelas feministas, pois era insensível à diversidade de experiências da deficiência. A sobrevalorização da independência é um ideal perverso para muitos deficientes incapazes de vivê-lo. Há deficientes que jamais terão habilidades para a independência ou capacidade para o trabalho, não importa o quanto as barreiras sejam eliminadas”. (DINIZ, 2007, p.28) 6

Surge aqui uma questão crucial que foi posta de lado no primeiro modelo: o cuidado.  A inserção de pessoas não deficientes no debate veio por meio das cuidadoras. Existem pessoas com deficiência que necessitam do cuidado permanente como condição de sobrevivência. As relações sociais também foram tema do segundo modelo.

“As feministas cuidadoras não apenas passaram a ser uma voz legítima nos estudos sobre deficiência, mas principalmente colocaram a figura da cuidadora no centro do debate sobre justiça e deficiência, denunciando o viés de gênero no liberalismo político. Há desigualdades de poder no campo da deficiência que não serão resolvidas por ajustes arquitetônicos. Apenas princípios da ordem das obrigações morais, como o respeito aos direitos humanos, serão capazes de proteger a vulnerabilidade e a dependência experimentadas por muitos deficientes. A proposta feminista do cuidado diz respeito a relações assimétricas extremas, como é o caso da atenção aos deficientes graves.* Erroneamente supõe-se que o vínculo estabelecido pelo cuidado seja sempre temporário: há pessoas que necessitam do cuidado como condição de sobrevivência. Por isso, ele é uma demanda de justiça fundamental.”(DINIZ, 2007, p.30)

Além disso, o segundo modelo trata de questões de gênero, etnia, orientação sexual e idade. Em alguns casos, a pessoa além de sofrer o estigma da deficiência, ainda sofre com outros tipos de preconceito, por exemplo, ser mulher e deficiente.

“Por fim, foram as feministas que mostraram que, para além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade.9 Ser uma mulher deficiente ou ser uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social da deficiência. Para as teóricas feministas da segunda geração, aqueles primeiros teóricos eram membros da elite dos deficientes, e suas análises reproduziam sua inserção de gênero e classe na sociedade.” (DINIZ, 2007, p. 28.)

Reconhecer que nem toda pessoa com deficiência é capaz de se tornar independente mesmo com a retirada de barreiras, reconhecer a interdependência nas relações e inserir as questões de cuidado e cuidadoras formamas inovaçõesrepresentativas da segunda geração do modelo social.

Embora reconheçamos a contribuição trazida pelo modelo social,não trabalharemos com a divisão entre lesão e deficiência, mas sim, optamos pelos termos empregados pelaONU, quais sejam, deficiência, incapacidade e impedimento, bem como o conceito de desvantagem para tratar das questões sociais. [4]

Para a ONU deficiência é “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.” Incapacidade trata-se de “toda restrição ou falta (devido a uma deficiência) da capacidade de realizar uma atividade na forma ou na medida em que se considera normal a um ser humano”. O impedimento é “a perda ou limitação das oportunidades de participar da vida da comunidade em igualdade de condições com os demais.”O conceito de desvantagem é mais abrangente que o de impedimento pois não apenas pessoas com deficiência podem vivenciar a desvantagem. Grupos minoritários como mulheres, idosos, e minorias raciais sofrem também desvantagem (por isso a hipótese aqui apresentada de que ser mulher e deficiente é uma dupla desvantagem na inserção no mercado de trabalho). Além de outros aspectos que podem causar desvantagem, como por exemplo, ser portadora de HIV ou ter uma deformidade facial que o torne fora dos padrões de beleza e normatividade da sociedade. Isso ocorre porque a desvantagem é principalmente uma questão de estigma e discriminação.

No Brasil, a luta pelos direitos das pessoas com deficiência vem sendo positivada no Direito e exteriorizando seus efeitos através de leis, porém não podemos afirmar que os direitos adquiridos vêm sendo respeitados e cumpridos por todos. Conforme assinalado por Araújo (2013),

“Socialmente, soa como uma conquista histórica e extremamente significativa o fato de indivíduos com deficiência passarem a ter direitos incluídos em vários trechos da Carta Política […] Enquanto as pessoas com deficiência, os movimentos representativos destas pessoas e setores do Ministério Público, das Defensorias Públicas, intelectuais, etc. comemoram, o processo de inclusão pela legislação vai se consolidando formalmente, sem que tais prescrições levadas à condições de normas positivas venham, em muitas situações, a se traduzir em alterações substanciais na realidade prática da vida das pessoas com deficiência..” ( P.10)

Por conta dessa relação com o direito materializado em leis, ao tratarmos da reserva de cargos em empresas privadas, temos por base o conceito de deficiência utilizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego que por sua vez, funda-se nas definições contidas nas Convenções da Guatemala e Sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes da Organização Internacional do Trabalho (OIT).Esta última trata por pessoa deficiente “todas aquelas cujas possibilidades de obter ou conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada.” Já a Convenção da Guatemala acolhe o entendimento de que a deficiência é “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais a vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.”

3. A mulher com deficiência e o mercado de trabalho

A pessoa, especialmente a mulhercom deficiência, tiveram um acesso tardio ao mercado de trabalho formal.Á mulher, por muitos séculos ficou relegado a função reprodutiva. O sexo feminino era tido como frágil e dependente de proteção do chefe da família (normalmente pai ou marido). Sua formação visava à construção de uma boa esposa, dona de casa e mãe (bordado, costura, culinária, administração do lar, etc.). Raríssimas as mulheres que eram, quando muito, alfabetizadas. Não tinham direito a propriedade, sua herança era passada ao marido para que esse administrasse.

Entre osséculosXVIII e XIX, a mulher passa a ingressar no mercado de trabalho.Com o fim da escravidão e a introdução de uma nova mão de obra no Brasil ─ os imigrantes ─ além de escravos libertos, mas sem nenhuma qualificação e com um forte preconceito racial da sociedade da época, passaram a existir famílias extremamente pobres. Devido a tal situação, as mulheres e as crianças passam também a trabalhar tanto na lavoura, quanto nas novas fábricas que vem surgindo no país, para compor a renda familiar, não de forma igualitária com o homem, mas sua mão de obra vista como complementar, de baixo custo e com pouca ou nenhuma qualificação.O capitalismo via a mulher como uma reserva de mão de obra: barata e com poucas reivindicações. As guerras também têm grande impacto no mercado de trabalho, visto que, grande parte dos homens em idade produtiva estava na guerra. Além disso, muitos voltavam com ferimentos de guerra e incapazes de exercer suas antigas funções. Ironicamente, o período das duas Grandes Guerras foram ao mesmo tempo o que mais gerou pessoas com deficiências e ao mesmo tempo, o período em que a sociedade começa a aceitar a mulher trabalhando, à medida que faltava mão de obra.  Além dessas, algumas outras conquistas deram a oportunidade da mulher assumir o controle da própria vida. Podemos citar o direito a educação igualitária e o surgimento dos métodos contraceptivos (dando-lhe o direito de escolha de quando e se quer ser mãe).

Conforme já destacamos, até os anos 1970, as pessoas com deficiência não contavamcom qualquer independência em sua vida.Logo, a condição da mulher com deficiência era duplamente desigual. Se por um lado como mulher foi lhe negado acesso à educação e ao trabalho por séculos, por ser tida como “frágil” e “necessitar de proteção”, por outro estava em um corpo que era considerado “anormal”, “doente”, e inadequado para o meio social, comumente institucionalizado pela sociedade da época, onde o costume era a retirada dos deficientes do convívio social. Tal estigma ainda é agravado pela visão da sociedade que coloca um padrão aceitável no corpo feminino. A mulher deve ser bela, de formas perfeitas, atrativa, e, para parte da sociedade, um corpo deficiente não se enquadra nesse padrão, o que agrava o preconceito. No mercado de trabalho onde se é comum pedir “boa aparência”, tal idealização do corpo feminino novamente coloca a mulher com deficiência em desvantagem. Essa característica própria da mulher com deficiência éexplicada:

“No caso das mulheres, é recorrente na literatura feminista o argumento que evidencia a “dupla desvantagem” com que vivem as mulheres com deficiência em relação a participação social, direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho e renda. Ao se constituírem mutuamente e se retroalimentarem, os efeitos do duplo estigma potencializam a exclusão das mulheres com deficiência, processo que se complexifica ainda mais quando cruzado com outras categorias como raça/etnia e classe. De todo modo, oque se quer ressaltar aqui é que, se tendemos hoje a falar de masculinidades e feminilidades, é preciso ressaltar a deficiência como componente do espectro de possibilidades dessas posições de gênero plurais.” (MELLO, e NUERNBERG, 2012, P 641)

Ao analisarmos a efetividade da Lei de Cotas, procuraremos demonstrar como essa dupla desvantagem da mulher com deficiência se reflete hoje no mercado de trabalho.

4. A Lei de Cotas e as pessoas com deficiência

Devido à existência do preconceito contra a pessoa com deficiência se verificar de várias formas,sua inserção no mercado de trabalho somente tem se efetivado através de leis e políticas públicas. Acredita-se que a pessoa com deficiência é um ser incapaz de exercer tarefas profissionais, dando a estas um tratamento assistencialista ao invés de criar serviços de avaliação e capitação.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 23 reconhece que“toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho e a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 7º, proíbe a discriminação na remuneração e nos critérios de admissão dos trabalhadores com deficiência e, em seu artigo 37, VIII, prevê a reserva de percentual de vagas no setor público exclusivamente. Já no setor privado, foi o plano infraconstitucional, com política de cotas instituída em 1991, que tratou da reserva de vagas, sendo atualmente o principal mecanismo de inserção trabalhista disponível às pessoas portadoras de deficiência. Como disposto no artigo 93 da Lei 8213 de 24 de Julho, o número de funcionários de uma empresa privada determinará o piso percentual obrigatório para a contratação de beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência (para a Lei, a deficiência é considerada quando ocorre a perda ou anormalidade da estrutura ou de sua função psicológica ou fisiológica). Determina o referido artigo, in verbis:

“Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I – até 200 empregados……………….2%;

II – de 201 a 500……………………….3%;

 III – de 501 a 1.000……………………4%;

IV – de 1.001 em diante. ……………5%.

§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

§ 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.”

Entretanto, apesar da lei possuir plena vigência, de ser de conhecimento geral e de, sobretudo, gerar penalidades para aqueles que não a cumprirem, na prática os seus efeitos estão muito abaixo da própria previsão legal.

A principal crítica feita pelos empresários obrigados a contratar portadores de deficiência é que normalmente são estes pessoas de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, queacarretam custos elevados para a adaptação necessária na estrutura física das organizações, a fim de que os espaços possam ser adequados ao seu trabalho e deslocamento. No entanto, no que diz respeito à falta de qualificação profissional, o Ministério do Trabalho e Emprego (2007) explica que:

“A equipe que efetua a seleção deve estar preparada para viabilizar a contratação deste seguimento. Principalmente, precisa ter claro que as exigências a serem feitas devem estar adequadas às peculiaridades que caracterizam as pessoas com deficiência. Se isto não ocorrer, vai ser exigido um perfil de candidato sem qualquer tipo de limitação.” (p. 23).

O sobredito órgão, sobre a baixa  escolaridade ou até a falta dela para as pessoas com deficiência, reconhece como uma realidade, ponderando entretanto que

“Às pessoas com deficiência também na foram dadas iguais oportunidades de acesso à escolarização. Entretanto, muitas vezes, apesar de não terem a certificação, tiveram acesso ao conhecimento através do apoio da família ou da comunidade local. De outro lado, muitas vezes é exigido, de forma generalizada, um patamar de escolaridade que não é compatível com as exigências de fato para o exercício das funções.” (p. 23)

A partir disso, é possível aferir que a criação da Lei de Cotas foi feita para viabilizar o acesso de um grupo de pessoas que não têm meios nem condições de competir em igualdade por uma vaga profissional com as demais, cabendo as empresas privadas tornarem possível tal acesso.

5. Alguns números da Política de Inclusão Profissional
A análise do impacto da Lei de Cotas e de seus resultados é feita pelo banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), instaurada pelo Decreto nº 76.900 de 1975, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que em 2007, pela primeira vez, incorporou a questão da deficiência em seu questionário. Suas informações são prestadas anualmente e obrigatoriamente pelos estabelecimentos brasileiros, inclusive aqueles sem registro de vínculo empregatício no exercício. Em suma, é a RAIS um censo anual do mercado de trabalho formal.

Segundo a RAIS, de 2007 a 2011, o número de vínculos empregatícios ativos só aumentou, enquanto que o de portadores de deficiência ativos no mercado de trabalho, entre ligeiras elevações e diminuições, se estagnou em menos de 0,70% do total dos vínculos empregatícios. Os deficientes físicos representam a maior parte e os portadores de deficiência mental e deficiências múltiplas a menor. Quanto aos rendimentos médios das pessoas com deficiência, não houve, durante esses anos, grandes acréscimos, pelo contrário, a RAIS 2011 mostra que os rendimentos médios caíram em 7,29%.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre pessoas sem deficiência, a participação dos homens na população economicamente ativaé 34% maior que a das mulheres. Em pessoas com deficiência tal diferençacorresponde a 30%.

Na RAIS 2011, dos 325,3 mil vínculos declarados como de pessoas com deficiência, 213,8 mil eram do sexo masculino e 111,4 mil do feminino, em uma proporção de 65, 74% homens e 34,26 % mulheres. Quanto aos rendimentos médios, em todas as modalidades de deficiência o homem apresenta maior rendimento que as mulheres. Tais taxas variam de 58,34% para pessoas com deficiência auditiva até 90,17% para pessoas com deficiência intelectual.

Ainda que a participação dos homens com deficiência no mercado de trabalho seja 30% superior à das mulheres em igual condição, revelando discrepância menor que entre os trabalhadores sem deficiência (34%), as demais comparações aparentemente indicam que ser mulher e deficiente caracteriza dupla desvantagem no mercado de trabalho brasileiro.Ademais,a Lei de Cotas não adquiriu a efetividade esperada quando de sua elaboração, não logrando assegurar nem 1/5 dopercentual previsto no art. 93 do respectivo texto.As mulheres com deficiência, se comparadas às mulheres sem deficiência, dentro do seu respectivo grupo, chegam a perceber 90% menos em relação aos homens deficientes.

6. Considerações Finais

Até aqui, tudo o que foi escrito tem por finalidade chamar atenção para aspectos históricos e culturais que marcam significativamente a construção da atual era de direitos formalizados e pouco substancializados. Este trabalho procurou descrever um pouco da história da formação deste movimento e da realidade em números enquanto consequência da inclusão formal.

Este conjunto de condições marcado por um forte descompasso entre a norma jurídica e sua aceitação social tem motivado discussões intermináveis sobre os caminhos da política de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Para as mulheres, a condição de deficiente traz consequências, na maioria dos casos, mais graves do que para os homens, visto que aquelas, em muitos países, inclusive no Brasil, ainda se encontram em acentuada posição de desvantagem. As mulheres com deficiência suportam, simultaneamente, os reflexos da histórica discriminação pelo simples fato de ser mulher, assim como convivem com toda a carga discriminatória em decorrência da deficiência. Quando duas, três ou maiscondições ensejadoras de preconceitos e discriminação se reúnem em uma só pessoa, falamos em dupla, tripla ou múltipla desvantagem, o que equivale ao conceito de Barton (1996 apud Pastore, 2000) de “opressão simultânea.

No Brasil, visando dar fim a esta mazela, foi promulgada em 1991 a Lei de Cotas, que reserva para as pessoas com deficiência 2% a 5% das vagas disponíveis nas empresas privadas com 100 ou mais empregados. Obviamente, não será a mera criação de uma lei a solução de um problema que vem se agravando há anos, entretanto, apesar de a Lei de Cotas ainda estar longe de atingir o seu objetivo, não há como negar que foi ela um fator decisivo para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho.

A condição da mulher com deficiência, verificados os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) assim como outros tantos dados estatísticos nos permitem concluir que é momento da ciência jurídica questionar a própria política inclusiva legal vigente, com a finalidade de refletir sobre sua efetividade em relação às questões de gênero. Se as pessoas com deficiência, de uma forma geral, convivem com uma realidade de exclusão, entre as pessoas com deficiência, as mulheres enfrentam o drama da preterição por sua simples condição feminina.

Referências
ARAÚJO, Josemar Figueiredo. Depois da Lei de Cotas: Um Estudo dos Resultados da Política de Inclusão das Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho. São Paulo: Livre Expressão, 2013.
BARTON, Len. Disability and Society: Emerging Issues and Insigi don: Longman, 1996. apud PASTORE, José. Oportunidades de Trabalho para Deficientes. São Paulo: LTR, 2000.
BRASIL. Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência.
BRASIL. Decreto legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.
BRASIL. LEI Nº 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
DINIZ, Debora. O que é deficiência?. Brasília: Editora Brasiliense, 2007.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Disponível em <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf>. Acesso em: 17. Set. 2014.
MELO, Anahi Guedes De; NUERNBERG, Adriano Henrique. Gênero e deficiência: interseções e perspectivas. Revista Estudos Femininos.vol.20. Florianópolis: 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ref/v20n3/03.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.
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Notas:
[1] Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Publicados no Censo 2010.

[2]Só o Brasil, no último Censo (2010) já detectou a existência de mais de 45 milhões. Esses dados foram estimados no Programa Mundial de Ação da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1981 e têm por finalidade apenas ajudar a descrever a intrínseca relação entre deficiência e pobreza.

[3] Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2012)

[4]Estas distinções podem ser melhor estudadas no Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência das Nações Unidas de 1981, publicado também pelo Governo Brasileiro em 1997.


Informações Sobre os Autores

Carolina Silva de Andrade

Acadêmica de Direito na Universidade Veiga de Almeida

Josemar Figueiredo Araújo

Doutorando e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Bacharel em direito e advogado militante, atua como professor de Direito Público


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