A liberdade do homem rousseauniano no estado democrático de direito

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Resumo: O presente artigo analisa os paradigmas da liberdade humana descritos pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau. Para isto delimita como marco teórico o Estado de Natureza e a formulação do Contrato Social a fim de minuciar os conflitos entre os vários conceitos possíveis de liberdade. Após, confronta a obediência do homem à vontade geral descrita por Rousseau com os princípios do não-impedimento e não-constrangimento do Estado Democrático de Direito delimitados por Bobbio, identificando os fatores que compõem a democracia e que permitem ao homem desenvolver-se de forma autônoma e desimpedida perante o corpo político a que pertence.

Palavras-chave: Liberdade, Democracia, Rousseau, Bobbio, Estado.

Abstract: The present article analyses the paradigms of the human freedom described by the philosopher Jean-Jacques Rousseau. For this the conflicts delimit like theoretical landmark the State of Nature and the formulation of the Social Contract in order to minuciar between several possible concepts of freedom. After, it confronts the obedience of the man to the general will described by Rousseau with the beginnings of the non-impediment and non-embarrassment of the Democratic State of Right delimited by Bobbio, identifying the factors that compose the democracy and that allow to a man to develop in the form autonomous and unblocked before the political body that belongs.

Keywords: Freedom, Democracy, Rousseau, Bobbio, State.

Sumário: Introdução. 1. Liberdade em Jean-Jacques Rousseau. 2. Liberdade e Democracia em Norberto Bobbio. Conclusão.

Introdução

No decorrer histórico da humanidade diversos intelectuais submeteram-se ao estudo terminológico da liberdade humana – Hobbes, Rousseau, Hegel, Sartre, Nietzsche, dentre outros. Respeitado o espaço e a amplitude temporal dos mesmos, destaca-se que jamais houve unanimidade quanto aos pensamentos produzidos. O próprio Jean-Jacques Rousseau, clássico estudioso da composição essencial do homem e considerado por muitos como um filósofo apaixonado pela liberdade, admite que o conceito e as ramificações da mesma variam de acordo com o tempo e a localidade histórica em que sofrem análise.

É notório que um dos maiores embates filosóficos perpetua-se entre igualdade e liberdade. Apesar da existência de diversas pesquisas científicas que tratem desta relação – muitas até voltadas para os escritos de Rousseau −, nota-se considerável lacuna dentro do campo acadêmico na aplicação social da liberdade a partir da autodeterminação do homem e da qualificação da ação na esfera do Estado Democrático de Direito.

São as intervenções doutrinárias do filósofo, historiador e cientista político Norberto Bobbio o elo entre as concepções democráticas rousseaunianas e o Estado Democrático de Direito. Como percebido pelo cientista, este é fruto do amadurecimento político das formulações liberais e sociais entre o século XVIII e XX, com efeito, as próprias construções democráticas enfrentam redefinições históricas durante tal processo de amadurecimento, modificando, entre outras definições, o próprio âmago da liberdade humana.

A liberdade para Jean-Jacques Rousseau, em nascituro, é anexa ao homem como elemento fundamental para a constituição do ser, mas apenas por seu caráter autodeterminante, definido por Bobbio como qualificação do querer. Acredita-se, inicialmente, que a plena liberdade humana diante de uma sociedade democraticamente constituída dependa não apenas do querer, vontade ou desejo, mas da possibilidade de materialização deste no plano físico – qualificação da ação.

Aparentemente não há de se falar em liberdade sem que dentro de tal conceito estejam as definições de querer e conduta em constante harmonia. Tal abordagem torna o presente estudo ímpar naquilo que se propõe a responder, a saber, há liberdade democrática se ausente os fatores positivos ou negativos em sua concepção? E além, seria a liberdade rousseauniana, que desconsidera impedimentos e constrangimentos à materialização do querer humano, válida ao Estado Democrático de Direito? Ora, não existem respostas óbvias, tampouco perguntas que não mereçam ser feitas. Elucidar as razões que compõem a liberdade e o pleno desenvolvimento do homem é fundamental para garantir que estes jamais sejam suprimidos na sociedade.

1. Liberdade em Jean-Jacques Rousseau

No Contrato Social de Rousseau (1996) o filósofo defende a existência de duas principais espécies de liberdade, a saber, natural e civil – poderíamos destacar, ainda, a política e a moral. Para iniciar os estudos acerca da liberdade natural, a obra Discurso sobre a origem e desigualdade entre os homens de Rousseau (1999) demonstra que a essência do homem está na subtração dos elementos históricos pós-civilizatórios, tais como leis, organização social, concepção de governo e Estado, convenções e a própria noção de direito. Este modelo humano, despido de toda e qualquer corrupção individual, somente pode ser encontrado em seu estado pré-social − ou estado de natureza. Tal estado possui caráter jusnaturalista,[1] sendo uma hipótese na qual o homem usufrui da liberdade e igualdade em sua plenitude, tanto para com seus semelhantes quanto para com a natureza em si.

O homem selvagem para Rousseau (1999) está afastado de qualquer sentimento de ambição, vaidade e egoísmo, bem como não necessita partilhar de qualquer experiência de convivência com seu semelhante, pois, mesmo que solitário, é feliz e independente. Este é movido por um único instinto, a autoconservação, e é esse instinto que o faz aprimorar suas habilidades físicas como caça, pesca e agricultura.

É a propriedade, de acordo com Rousseau (1999), o agente que corrompe o homem, que desintegra seu espírito calmo e perturba sua consciência. Surge, neste momento, a desigualdade política e o mecanismo hipotético de organização da sociedade, o contrato social.

Para Rousseau (1996, p.9) “o homem nasceu livre e por toda parte ele está agrilhoado. Aquele que se crê senhor dos outros não deixa de ser mais escravo que eles”. Assim, Rousseau (1996) confirma que o estado social nasce do rompimento do homem selvagem com o estado de natureza, resultando nas primeiras noções de civilização, governo e Estado. O que é igual torna-se desigual e o que é liberdade agora é escravidão imposta pela força.

O contrato social, segundo Rousseau (1996), identifica a administração legítima capaz de garantir o cumprimento dos direitos e deveres civis, pois tem como objeto o homem em sua esfera social. Procura, tão logo vislumbre os meios de organização social aptos a gerir a vida em sociedade, tutelar a liberdade e a igualdade ora perdidas.

É na espontaneidade do contrato social, pelas letras de Rousseau (1996), que o homem encontra novamente sua essência, agora não mais como selvagem no estado de natureza, mas como cidadão no estado social. Se todos os cidadãos são iguais politicamente, não se admitindo superioridade alguma entre os mesmos, a única administração admitida da vida social é aquela que se baseia no interesse comum, assim denominada vontade geral.

Para Rousseau (1996) assim como a fronteira da liberdade natural do homem é sua própria força, o limite de sua liberdade civil é a vontade geral. Liberdade civil é a submissão voluntária do homem ao interesse comum, visto que ele materializa o Estado e juntos formam um corpo político, indivisível e inalienável, capaz de garantir a plena convivência entre os pares. Tal submissão é a alienação integral das forças e direitos do homem à comunidade, visto que esta é a única capaz de lhe proteger como membro do corpo político. Encontra-se, nesse momento, a plena experiência de liberdade e igualdade, a saber, vontade geral e tutela estatal, respectivamente.

Nesta linha de ideias Rousseau (1996) demonstra que o Estado é o legitimado ao exercício da vontade geral, logo implica ao mesmo a função legislativa. É inapropriado que o mesmo que produza a lei também seja o que determina seu cumprimento, nesse sentido faz-se necessário o governo como figura autêntica ao exercício da função executiva.

Rousseau (1996, p.72) evidencia que o “governo é um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para permitir sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade”. É de evidente importância que o governo seja forte o suficiente no efetivo cumprimento das leis, não se admitindo ameaças ao corpo político. Portanto, Rousseau (1996, p.74) esclarece que “quanto menos as vontades particulares corresponderem à vontade geral, isto é, os costumes às leis, tanto mais a força repressiva deve aumentar”.

Ora, embora a liberdade natural seja de grande apreço no estudo do pensador, para nós importa somente a liberdade civil, pois se esta é o respeito à vontade geral como objeto do Estado − através da função legislativa − e o governo representa a função executiva incumbido de preservar o corpo político pelo cumprimento legal, parece-nos cristalino o conflito entre o querer individual e a materialização deste, desmantelando-se o próprio conceito de liberdade proposto por Rousseau, pois em uma sociedade democraticamente constituída corriqueiras serão as vezes em que a vontade geral impedirá a ação humana de se concretizar.

2. Liberdade e Democracia em Norberto Bobbio

Existem duas formas políticas de estabelecer a relação entre Norberto Bobbio e as teorias de Jean-Jacques Rousseau. A primeira, aquela que visa alcançar o objetivo geral deste projeto, é através da incompatibilidade entre autodeterminação em Rousseau e liberdade negativa em Bobbio. A segunda, a qual possibilita a realização da primeira, é compreender a visão do cientista político sobre a democracia.

Na obra Estado, Governo e Sociedade de Bobbio (1987) o autor estabelece os critérios e usos que distinguem a democracia das demais formas de governo já experimentadas pelas sociedades, tais como monarquia e aristocracia. Neste sentido, Bobbio (1987, p.137) define a democracia como “forma de governo na qual o poder é exercido por todo o povo, ou pelo maior número, ou por muitos”. Bobbio (1987, p.138) reitera que o Estado Democrático caracteriza-se pelo “governo dos muitos com respeito aos poucos, ou dos mais com respeito aos menos, ou da maioria com respeito à minoria ou a um grupo restrito de pessoas (ou mesmo de um só)”.

Tal definição deriva do uso descritivo de democracia, pelo qual o poder político de uma sociedade é exercido pelo povo, o que nos parece bastante familiar à vontade geral descrita por Rousseau. O próprio Bobbio (1987, p.138) afirma que “este significado de democracia ligado à tripartição[2] das formas de governo é encontrado no poder soberano do Contrato Social de Rousseau”.

Delimitada a esfera temporal que Rousseau propõe e o que significa tal proposta dentro do Contrato Social – uma democracia estruturada na vontade geral –, podemos retornar à primeira relação entre Norberto Bobbio e as teorias rousseaunianas – liberdade negativa e autodeterminação.

Na obra Igualdade e Liberdade de Bobbio (1996) o autor identifica duas espécies centrais de liberdade, a saber, positiva e negativa. Segundo Bobbio (1996, p.51) “por liberdade positiva entende-se (…) a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer de outros”. A isto também chamamos de autodeterminação ou, ainda, autonomia.

“A definição clássica de liberdade positiva foi dada por Rousseau, para quem a liberdade no estado civil consiste no fato de o homem, enquanto parte do todo social, como membro do eu comum, não obedecer a outros e sim a si mesmo, ou ser autônomo no sentido preciso da palavra, no sentido de que dá leis a si mesmo e obedece apenas às leis que ele mesmo se deu: A obediência às leis que prescrevemos para nós mesmo é a liberdade” (BOBBIO, 1996, p.51).

Pelas palavras de Bobbio (1996, p.48) “por liberdade negativa (…) entende-se a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros sujeitos”. Em síntese, liberdade negativa é a ausência de impedimentos ou constrangimentos. Bobbio (1996) explica que impedimento de conduta é algo alheio ao homem que impossibilita que este realize determinada ação – por exemplo, uma lei que o proíba de algo −, enquanto constrangimento de conduta é algo também alheio, mas que o obriga a realizar uma ação – como exemplo, uma ordem de cumprimento obrigatório.

Quando questionamos se o conceito de liberdade civil de Rousseau limita a própria essência da expressão, estamos apenas demonstrando que Rousseau ignora o conceito negativo da mesma e adota unicamente o conceito positivo. A liberdade para Rousseau (1996) é a obediência às leis produzidas pela vontade geral, vontade esta que representa o querer do homem, eis o motivo por Bobbio (1987) caracterizar a sociedade rousseauniana como uma democracia-autônoma. Tal liberdade é exatamente o que o cientista político define como qualificação do querer humano, mas ignora, em todos os aspectos, a realização do querer.

Rousseau (1996, p.15) afirma que “renunciar à própria liberdade é renunciar à qualidade de homem, e até aos próprios deveres (…), enfim, é inútil e contraditória convenção que estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites”. A máxima inquietação deste projeto concentra-se exatamente nesta questão. O que Jean-Jacques Rousseau chama de liberdade, a qualificação do querer, para Bobbio (1987) é apenas um elemento que compõe a liberdade e não a liberdade em si − ou, no máximo, uma espécie isolada de liberdade.

Conclusão

Aparentemente, falta à sociedade de Rousseau a liberdade negativa, a qualificação da ação, pois apesar de Bobbio não eleger qual é a verdadeira liberdade dentro de um Estado Democrático de Direito – e até afirmar a possibilidade de ser livre no querer sem que o mesmo ocorra na ação ou vice-versa, ululante é o fato de que em uma democracia constitucionalmente posta, onde, em tese, todo o poder emana da maioria, o conceito de liberdade só pode ser aquele que expressa o máximo desenvolvimento e potencial do homem civilizado.

Dizer isto significa que a liberdade humana depende, supostamente, da correlação entre capacidade de autodeterminação do querer e da ausência de impedimentos ou constrangimentos na completude da ação, sem excluir, obviamente, a responsabilização por seus atos e os limites legais constituídos.
 

Referências
BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e estado na filosofia política moderna. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 192p.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2001. 192p.
______. Estado, governo, sociedade. Para uma teoria geral da política. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 176p.
______. Igualdade e liberdade. 1. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 96p.
______. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2005. 104p.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e desigualdade entre os homens. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 331p.
______. O contrato social. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 188p.
 
Notas:
[1]Para Bobbio (1994) o conceito de jusnaturalismo depende da perspectiva em que se analisa o objeto. Tal perspectiva pode ser em face da teoria do direito, da ideologia jurídica ou da metodologia do direito. Se analisados conjuntamente, jusnaturalismo seria a constituição do direito natural através da relação entre natureza e homem, pela qual todas as experiências humanas são formadas e experimentadas.

[2]Segundo Bobbio (1987) compreendem a tripartição das formas de governo a monarquia, autarquia e democracia.


Informações Sobre o Autor

Victor Bacelete Miranda

Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Graduando em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo. Pós-graduando em Teoria e Filosofia do Direito pela PUC-MG. Mestrando em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia


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