As incongruências do instituto da transação penal: aspectos de um acordo por adesão

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar os aspectos de contrato de adesão que tem se revestido o instituto da Transação Penal instituído pela Lei 9099/95. Para tanto utiliza-se da categoria mitologia jurídica cunhada por Paolo Grossi em sua obra Mitologias Jurídicas da Modernidade demonstrando a existência de tal fenmeno na concepção do instituto da Transação Penal utilizando como apoio as críticas por Geraldo Prado em Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal. Por fim evidencia-se o caráter de adesão que o instituto da Transação Penal adquiriu em sua utilização prática. O método utilizado é o indutivo por meio da pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: 1 Mitologias Jurídicas da Modernidade; 2 Transação Penal; 3 Lei 9099/95.

Abstract: This paper aims to present aspects of a adhesion contract that has coated the Institute of Penal Transaction established by Law 9099/95. To do so we use the category juridical mythology coined by Paolo Grossi in his Juridical Mythologies of Modernity work demonstrating the existence of such phenomenon in the design of the Institute of Penal Transaction using as support the criticism of Geraldo Prado in his Elements for a Critical Analysis of Penal Transaction. Finally it is shown the character of adhesion of the Penal Transaction acquired in its practical use. The used method is the inductive through bibliographic research.

Keywords: 1 Juridical Mythologies of Modernity; 2 Penal Transaction; 3 Law 9099/95.

Sumário: Introdução. 1 Mitologias Jurídicas da Criação do Estado Moderno. 1.1 A mitologia presente na construção do Estado Moderno. 1.2 A mitologia e o Direito no século XX. 2 Os argumentos mitológicos envolvidos na transação penal. 2.1 O argumento da redução do número de processos. 2.2 A classificação formal do que seriam crimes de menor potencial ofensivo. 2.3 A vítima e o processo. 3 O obscuro aspecto de adesão da transação penal: a maior mitologia. 3.1 A adesão na negociação: impossibilidade de se discutir os termos do acordo. 3.2 Adesão na relação: a falta de isonomia entre as partes. Considerações Finais.

INTRODUÇÃO

O instituto da transação penal, trazido pelo advento da Lei 9099, veio como uma grande promessa de conferir maior celeridade na resolução dos chamados crimes de menor potencial ofensivo. Com influência de outros sistemas jurídicos que valorizam o acordo entre o Estado e o acusado, tal instituto foi revestido de um caráter revolucionário e inovador.

Porém, passados alguns anos de seu implemento, o que se observa é que tal instituto adquiriu aspectos de adesão, como a impossibilidade de se discutir os termos do acordo formulado entre Ministério Público e acusado.

O presente trabalho analisará este e outros aspectos de adesão que o instituto da transação penal adquiriu ao longo do tempo, cuja causa pode ser encontrada quando de sua própria criação, desprovida de uma concatenação histórica com a realidade brasileira, feita por meio de um aspecto mitológico jurídico, expressão esta cunhada pelo pensador italiano Paolo Grossi.

1 MITOLOGIAS JURÍDICAS NA CRIAÇÃO DO ESTADO MODERNO

Os gregos antigos se valiam da mitologia como instrumento pedagógico para ensinar valores aos seus indivíduos. Como bem evidencia Werner Jaeger na obra Paideia: formação do homem grego, diversas eram as lições passadas pelas histórias mitológicas: a figura do herói de Homero na Ilíada e a Odisseia, que servia de referência para que o homem grego superasse suas dificuldades do cotidiano; o valor ao trabalho demonstrado por Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias, que inspirava os agricultores no difícil plantio dos planaltos gregos; e os diversos contos, como a da Medusa, Ícaro e Dédalo, apenas para citar alguns exemplos.(JAEGER, 2003, p. 61)

E na Grécia Antiga não só os mitos, mas também as peças teatrais de Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes e tantos outros, serviram para o aprimoramento individual e social do povo helênico. A consequência das ações prática, a tendência do ser humano em fugir de seus problemas, a dependência afetiva do homem em relação à mulher, eram apenas alguns dos vários temas abordados por tais espetáculos teatrais, que além do entretenimento, buscavam transmitir conhecimento e sabedoria aos seus espectadores. (JAEGER, 2003, p. 440)

 Assim, para cumprir este papel pedagógico, o conto fantástico se insere em um passado remoto, quase imemoriável, difícil de ser situado em uma cronologia exata, porque assim ele vale para qualquer indivíduo, em qualquer momento histórico. 

O mito possui um grande poder de transmitir conhecimento, pois pode ser aplicado em qualquer momento histórico e, devido à sua característica de pertencer ao além da realidade, em diversas vezes foi utilizado por diversos outros propósitos diversos daquele em que foi originalmente concebido pelos gregos antigos.

1.1 A mitologia presente na construção do Estado Moderno

O autor italiano Paolo Grossi evidencia a utilização desta técnica no universo do Direito, o que se inicia a partir da construção do Estado Moderno:

“O iluminismo político-jurídico precisa do mito porque precisa de um absoluto ao qual se agarrar; o mito cobre nobremente a carência de absoluto que foi colocada em prática e preenche um vazio que poderia se tornar arriscadíssimo para a estabilidade da nova estrutura da sociedade civil”. (GROSSI, 2007, p. 52)

O Estado moderno, na busca por se desligar completamente da Idade das Trevas e da estrutura social e econômica do feudalismo, bem como do poder da Igreja Católica, vê no Direito uma forma de criar o cimento de sua própria estrutura: o Direito criaria os postulados que dariam fundamento ao Estado Moderno, e se romperia com as concepções que deram sustentação ao chamado antigo regime. Portanto, o poder político na Idade Moderna, materializado pela figura do Estado, vale-se do Direito para criar seus próprios fundamentos e sua própria legitimação. (GROSSI, 2005, p. 3)

Assim como na mitologia, na construção moderna do que se denominou Estado, criaram-se conceitos, ideias, concepções que fazem parte de um universo para além da realidade, que não está conectado com o espaço-tempo e com a experiência histórica.

“O grande conjunto de ideias dos séculos XVII e XVIII: estado de natureza, contrato social, representação política, igualdade jurídica, vontade geral, e, assim por diante. É um conjunto de ideias que compõe e une a si a desinibição metodológica e, ao mesmo tempo, é busca de uma fundamentação mítica, oferecendo a desconcertante visão de um estamento intelectual que considera irrenunciável aquela operação fundadora” (GROSSI, 2007, p. 51)

Tais conceitos não são criados a partir da história, mas sim de uma necessidade política, de legitimação de uma nova verdade social. Assim se dá também com a eleita principal fonte do direito, que passa a ‘vontade geral’. Basta encontrar a vontade geral na lei, e o direito estava configurado, deixando de lado as fontes históricas da construção do Direito. (GROSSI, 2005, p. 4)

Estes conceitos utilizados pelo Estado Moderno não são novos. Platão, em A República já falava sobre a renúncia de direitos individuais, por meio de um pacto mútuo para que fosse possível a organização e a vida em sociedade, o que ficou conhecido na idade moderna como ‘contrato social’. (PLATÃO, 2012, p. 79) Mesma linha segue a vontade geral de Rousseau, já explanada de forma análoga por Aristóteles em sua Política.(ARISTÓTELES, 2009)

Assim, revistando conceitos antigos para desenvolver postulados, o Direito Moderno criou uma meta-realidade, desvinculada da história jurídica e da experiência jurídica, isto porque aquela é sólida, irrefutável, enquanto estas estão em constante mutação. Esta pareceu ser a medida pareceu a mais acertada pelos influentes pensadores da época, na busca pela consolidação do modelo moderno de sociedade civil, baseado na figura do Estado. (GROSSI, 2007, p. 51)

1.2 A mitologia e o Direito no século XX

Estas criações mitológicas dentro do ambiente jurídico, desvinculadas da história, não estão apenas presentes na Idade Moderna, mas são ainda amplamente utilizadas pelos pensadores atuais.  Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito (2006) fundamenta todo seu ordenamento em uma norma pressuposta, a norma fundamental, que não encontra nenhum correspondente na realidade fática; John Rawls em Uma Teoria da Justiça (2000, p. 26) traz a necessidade de um véu da ignorância para se chegar a uma conclusão justa sobre determinado caso, dentre outros vários exemplos possíveis.

O Direito, que deveria ser escrito e rescrito com base na história, passa a ser um depósito de conceitos meta-reais que existem para cumprir um papel político da época, ou até mesmo uma cultura de desvinculação com a realidade social. E o efeito disto é que o homem comum se sente estranho e distante do direito, pois a sua história não é a história do direito; o direito parece ser este grupo de conceitos disponibilizados ao juiz, que pode julgar conforme a adequação ao caso concreto por ele instituída. (GROSSI, 2005, p. 6)

A criação destes postulados ideias, desconectados da realidade fática, pouco contribuem para a resolução prática dos conflitos, tarefa esta que deveria ser do Direito. A criação ideológica e abstratamente encadeada entre conceitos como estado de natureza, contrato social, norma pressuposta, etc., não contribuem para a decisão do juiz no caso prático, ou para o aprimoramento da qualidade das decisões jurídicas.

O pensador Amartya Sen em Uma ideia de Justiça esclarece bem tal fato.

“Para exemplificar, se estamos tentando escolher entre um Picasso e um Dalí, de nada adianta invocar um diagnóstico (mesmo que esse diagnóstico transcendental pudesse ser feito) segundo o qual o quadro ideal no mundo é a Mona Lisa. Pode ser interessante ouvir isso, mas não tem nenhuma relevância na escolha entre um Dalí e um Picasso” (SEN, 2011, p. 46)

Amartya Sen evidencia que a busca por um conceito ideal desconectado da realidade de nada serve para resolver o problema prático do aqui e agora. De mesma forma, as mitologias jurídicas da modernidade, apesar de trazerem conceitos que, na teoria, são esquematicamente perfeitos e bem encadeados, também são deficientes quando aplicados na realidade fática do universo jurídico.

E se o Direito Brasileiro se funda, quase que em sua totalidade, por meio do direito europeu, é evidente que as mitologias jurídicas estão também presentes em nossas legislações, e nos nossos operadores jurídicos. Aliás, como assevera Geraldo Prado, os juristas brasileiros absorveram termos como vontade geral, contrato social e Estado Moderno, sem, contudo terem passado pelas mesmas mudanças e revoluções por quais passaram a Europa continental. Ou seja, se as mitologias jurídicas já estão desconectadas da realidade, mais distantes são elas quando transportadas para o território brasileiro. (PRADO, 2003, p. 177)

O mesmo autor, ao tratar especificamente do direito criminal, defende que “na verdade a história real do Direito Penal em nossas terras se revela por trás de pelourinhos, senzalas, açoites e chibatas, execuções públicas e autos de fé” (PRADO, 2003, p. 86), evidenciando, como Paolo Grossi, que o verdadeiro direito não pode, ou não poderia estar desconectado com a realidade.

A criação desta meta-realidade acerca do ordenamento jurídico brasileiro, fundado nas mitologias jurídicas do direito e da ciência moderna, fazem com que o cidadão brasileiro não se reconheça na lei. Pior: a lei se torna sua inimiga. Não é um mero acaso que grande parte dos cidadãos brasileiros estão muito mais familiarizados com a legislação norte-americana, (devido aos filmes americanos e séries policiais), do que com os próprios direitos e prerrogativas do direito pátrio. PRADO, 2003, p. 106)

Este cenário brasileiro de alienação à lei favorece a criação de novas mitologias, que assim como no Estado Moderno, revestem-se de uma proposta revolucionária e inovadora, mas que carrega em suas raízes o mesmo aspecto rígido e imutável dos dogmas.

Neste cenário se insere a conhecida transação penal, fruto da lei 9.099/95, que veio de carona com as políticas efervescentes do judiciário relacionadas à celeridade e à economia processual, mas que, em uma análise mais aprofundada, carregam estigmas de um antigo sistema inquisidor medieval.

2 OS ARGUMENTOS MITOLÓGICOS ENVOLVIDOS NA TRANSAÇÃO PENAL

A busca por uma maior celeridade processual e desafogamento do Poder Judiciário levou à edição da Lei 9099/95, que previu a criação dos juizados especiais cíveis e criminais em âmbito estadual, tratando especificamente a partir de seu art. 60 acerca da esfera criminal.  Os juizados especiais, de acordo com a lei, nasceram com procedimentos simplificados a fim de dar maior velocidade à resolução às lides com menor complexidade, relacionadas, especificamente no âmbito criminal, às infrações penais de menor potencial ofensivo.

Assim, diversos institutos como a conciliação, a suspensão condicional do processo e a transação penal surgiram como formas alternativas de resolução do conflito criminal. A reparação diretamente à vítima também foi oportunizada como uma forma de extinção ao longo processo criminal.

Transação vem do latim transactio, que juridicamente significa uma convenção na qual duas ou mais pessoas fazem concessões recíprocas, ajustando cláusulas para evitar um litígio, ou resolver o litígio, caso ele já tenha sido suscitado. É, portanto, um negócio jurídico bilateral, com vontade de ambas as partes presentes na sua confecção. (FREITAS, 2006, p. 69)

Especificamente acerca do instituto da transação penal, este foi recebido com críticas positivas, de acordo com o pensamento de diversos doutrinadores (MOLINA; GOMES, 2002). As expressões como “revolução”, “avanço” “evolução” são comumente usadas por tais juristas ao se referir a transação penal, sendo ela responsável por tornar o direito brasileiro mais ‘moderno’. (WUNDERLICH, 2005, p. 51)

 Porém, por detrás deste argumento de revolução, escondem-se diversos efeitos colaterais invisíveis ao olhar menos apurado. A máscara na qual foi revestido o instituto, com revolucionário e inovador, acaba por dificultar a leitura neutra dos efeitos da colocação desta modalidade de resolução dos conflitos dentro da realidade brasileira. O que se observa é a criação de uma mitologia, nos mesmos moldes àqueles descritos por Paolo Grossi, nos entornos deste instituto. (WUNDERLICH, 2005, p. 51)

Fixa-se o paradigma de que é um procedimento avançado, sem, contudo observar concretamente seus efeitos, sem relacioná-lo à realidade histórica do contexto brasileiro.

Ao analisar de maneira mais atenta os argumentos utilizados para enaltecer a transação penal, constata-se que dos fatos não decorrem necessariamente as conclusões apresentadas, e que o instituto desenvolveu uma série de efeitos negativos a um Estado democrático de Direito.

2.1 O argumento da redução do número de processos

Um dos principais argumentos para justificar a transação penal é o de que tal medida reduziu significativamente o número de oferecimento de denúncias e de processos penais, conforme se preconizava nos primeiros anos do advento da lei.

“São poucas as estatísticas que dispomos, até aqui, sobre o funcionamento dos juizados especiais. Sabe-se, entretanto, que diminuiu o número de denúncias, assim como o número de processos em andamento. Em 1994 havia 682.257 processos em andamento na Justiça Criminal comum do Estado de São Paulo; em 1999, apesar do aumento da criminalidade e da população, este número era de 658.196. Não já dúvida de que a diminuição se deve à Lei dos Juizados” (MOLINA, GOMES, 2002, p. 615)

Tal argumento inegavelmente tem grande poder de convencimento. No entanto, ao observar mais atentamente surgem os questionamentos: A diminuição do número dos processos significa que houve uma redução da criminalidade? Um menor oferecimento de denúncias significa que houve uma redução na prática de crimes? O fato é que se utiliza a transação penal como argumento à redução de processos e a maior celeridade processual, porém não se destaca o fato de que tal instrumento não contribuiu efetivamente para a redução da criminalidade.

E ainda que tenha havido uma suposta redução no número de processos das varas comuns, o que se observa é um crescente número de processos nas varas dos juizados especiais criminais. Isto porque, com o advento da Lei 9099/95, situações de menor potencial ofensivo, que muitas vezes acabavam em arquivamento na delegacia de polícia, passaram a ser enviados obrigatoriamente para o fórum, criando uma grande demanda de novos processos judiciais. O termo circunstanciado foi hipervalorizado e, basta uma lavratura do mesmo para que o suposto autor do fato tenha que ir ao Poder Judiciário, onde será intimidado e forçado a aceitar uma proposta de transação penal. (WUNDERLICH, 2005, p. 36)

O fato é que a lei, feita com o objetivo de dar maior celeridade ao Poder Judiciário, acabou por reavivar delitos e contravenções que já tinham sido esquecidos pela própria evolução social. Qualquer briga entre vizinhos, por exemplo, acaba sendo transformada em uma agressão verbal, é lavrado o termo circunstanciado, se transformando num processo com audiência e tudo o que mais compõe o processo judicial. (MORAIS DA ROSA, 2005, p. 69)

Não se pode esquecer que o objetivo de uma legislação criminal é o de alguma forma reduzir a prática de crimes dentro de um ordenamento jurídico. Um instituto que contribui para a diminuição do número de processos judiciais, mas não contribui para a redução da criminalidade, não pode ser descrito como um elemento de evolução de ou de inovação de um ordenamento jurídico.

2.2 A classificação formal do que seriam crimes de menor potencial ofensivo

Outro problema da Lei 9099/95 foi o de relacionar a expressão ‘delitos de menor potencial ofensivo’ à quantidade de pena que lhe é cominada. Opção melhor seria a vinculação com o bem jurídico tutelado, e não a quantidade de pena auferida. O grande problema é que o critério utilizado para quantificar penas no ordenamento jurídico brasileiro não respeita critérios de proporcionalidade e razoabilidade, e, portanto utilizar isto como parâmetro não contribuem para uma eficiente aplicação desta lei penal. (CARVALHO, 2005, p. 101)

“Art. 61.  Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.

 O que ocorre no ordenamento jurídico brasileiro é que, não se utiliza o critério material (bem jurídico tutelado) para auferir uma hierarquia delitiva, mas sim a pena aplicada. Criam-se assim absurdos, como por exemplo, o fato de que diversos delitos em esfera doméstica são tratados como de menor potencial ofensivo. (CARVALHO, 2005, p. 101)

O problema te tal parâmetro é que de um lado, têm-se bem jurídicos extremamente relevantes como, por exemplo, o meio ambiente, sendo tutelados de uma mesma maneira que os crimes contra a honra. É adequado que o meio ambiente, direito difuso que afeta as gerações futuras e presentas em toda a coletividade, seja tutelado em mesma proporção que os crimes contra a honra, que ofendem muitas vezes apenas a esfera subjetiva de um indivíduo?

Novamente observa-se que o revestimento inovador e revolucionário que possui a lei, ainda nos dias de hoje, carece de uma fundamentação lógica e jurídica, e assim sua notoriedade e credibilidade advém de uma construção abstrata, mitológica, desconectada dos fatos da realidade.

2.3 A vítima e o processo

Outro argumento bastante utilizado para enaltecer a transação penal, diz respeito o fato de que tais instrumentos reaproximaram a vítima do processo, fazendo com que esta tenha a possibilidade de ter seu dano reparado. Como forma de transacionar, pode o suposto autor do fato reparar o dano supostamente praticado a vítima, e assim o Ministério Público abriria mão de iniciar o procedimento acusatório.

É inegável que a possibilidade da composição civil dos danos trouxe a vítima ao seio do processo penal, pois o que acontecia, muitas vezes, era que a condenação do acusado não fazia com que o dano sofrido, muitas vezes pecuniário, fosse reparado. Na composição civil, por outro lado, a vítima tem a possibilidade de ter seu direito garantido.

Porém, em que pese tal aspecto positivo, existe outra circunstância completamente desfavorável à vítima. Em um devido processo legal, com a eventual condenação e a sentença transitada em julgado na esfera penal, basta que a vítima valha-se de tal sentença para buscar a sua reparação na esfera cível. Porém, caso o acusado aceite a proposta de transação penal que não repare a vitima, o acordo ali homologado em nada lhe serve, sendo que esta deverá constituir seu direito à reparação na esfera cível. (PRADO, 2003, p. 206)

Além disto, foi criado em alguns Estados o instituto da desistência tácita. Em outras palavras, quando a vítima é intimada para comparecimento em audiência e não comparecendo, presumia-se sua desistência tácita ao processo. Isto passou a acontecer até mesmo nas ações públicas condicionadas à representação, quando o conflito é suscitado nas delegacias de polícia. Então, se por alguma situação imprevista, de força maior ou qualquer outra razão, a vítima não pode comparecer à audiência, presume-se o seu desinteresse, e arquiva-se o processo no juizado. (WUNDERLICH, 2005, p. 40)

A apresentação sintética das críticas à transação penal feitas por Geraldo Prado serve por dois motivos: demonstrar a mitologia jurídica escondida por detrás de tal instrumento, e preparar o leitor para o que possivelmente seja a maior mitologia jurídica da transação penal: o falso entendimento de que ela possui um caráter conciliatório.

Esta visão da transação penal se reveste dos mesmos aspectos de meta-realidade de que trata o pensador italiano Paolo Grossi, pois apresenta o instrumento conciliatório desconectado de aspectos históricos da sociedade e do direito brasileiro. A transação penal é a resposta ao abarrotamento e morosidade do Poder Judiciário, a ‘resposta do futuro’, que na prática possui uma série de incongruências.

3 O OBSCURO ASPECTO DE ADESÃO DA TRANSAÇÃO PENAL: A MAIOR MITOLOGIA

Um dos principais argumentos levantados em defesa da utilização da transação penal é seu aspecto conciliatório. Supostamente, tem-se de um lado o Ministério Público, que abre mão de dar continuidade ao processo penal, e de outro, tem-se o acusado, que abre mão de diversas garantias fundamentais como o contraditório e o devido processo legal. Para resolver a lide de maneira célere e econômica, passam então a conciliar.

Pode-se proceder a suspensão condicional do processo ou a transação penal. Tais propostas são feitas pelo Ministério Público, que poderão ou não ser aceita pelo acusado. Grande parte da doutrina defende ainda que o acusado pode fazer uma contraproposta para o Ministério Público, e assim, juntos, ambos deliberam a fim de encontrar a melhor proposta possível para posterior aceitação. (MOLINA, 2002)

Defende-se ainda costumeiramente que nesta etapa dita pé-processual não há hierarquia ou subordinação: o suposto autor do fato encontra-se em uma situação de igualdade com o Ministério Público, o que permite a livre discussão e deliberação acerca da proposta conciliatória. Tal discurso é frequente na teoria, porém na prática tal situação é completamente diversa.

3.1 A adesão na negociação: impossibilidade de discutir os termos do acordo

Alguns anos após a implementação da Lei 9099/95, o depoimento de Alexandre Wunderlich ilustra bem o instituto da transação penal na prática, que muitas vezes possui um viés inquisidor e autoritário.

“O cenário é de horror. Vislumbro um euforismo apagado, uma revolução que não deu certo, um notável avanço que se notabilizou retrocesso, um modernismo que é antigo e uma desburocratização que cada vez mais se burocratiza. Lei no 9.099/95, ressalvadas as exceções absolutamente isoladas, não foi e não está sendo aplicada. Só para exemplificar: conciliações impostas às partes, propostas de transação penal quando não há justa causa para o oferecimento de denúncia ou queixa-crime, propostas de transação penal sem qualquer individualização ou obediência à realidade socioeconômica do autor do fato, audiências preliminares realizadas sem presença de advogados, sem a vítima, sem o representante do ministério público e até sem juiz”.(WUNDERLICH, 2005, p. 33)

Este cenário demonstra que é, para efeitos práticos, inviável ao suposto autor do fato negociar com o Ministério Público; assim, não existe uma negociação, mediação ou conciliação, mas tão somente uma imposição de uma proposta, que pode apenas ser aceita ou não ser aceita. As propostas, em várias ocasiões desprovidas de qualquer adequação ao caso concreto ou à realidade do suposto autor do fato, feitas de forma genérica ao modelo copia e cola, são oferecidas, muitas vezes, no formado de adesão, ou você aceita ou não.

“Nesta ótica, constata-se a hipertrofia do Ministério Público na Transação Penal, porquanto não existe espaço para a defesa, exceto responder de forma lacônica um ‘sim’ ou um ‘não’, ao que foi proposto pelo órgão acusador. […] O lugar da transação penal no procedimento sumaríssimo afronta direito e garantias constitucionais do acusado, pois equivale à possibilidade concreta de aplicação de pena sem o mínimo do devido processo legal”.(DE SOUZA, 2010, p. 130)

E devido à grande quantidade de processos, nas audiências de transação penal com frequência o Ministério Público não está presente, fazendo a proposta por escrito, nos próprios autos do processo. Cabe então ao suposto autor do fato aceitar ou não a proposta, não sendo possível discutir suas condições. A adesão adquire proporções ainda maiores, pois transplantando ao mundo do Código de Defesa do Consumidor, é como se recebêssemos um contrato por correio, pois nem a outra parte está presente no momento da assinatura. (PRADO, 2003, p. 196)

3.2 Adesão na relação: a falta de isonomia entre as partes

Em segundo lugar, o argumento de que existe uma situação de igualdade entre suposto autor do fato e Ministério Público é falsa, visto que muitas vezes o acusado é tratado como verdadeiro réu, sendo advertido das ‘graves’ consequências de não aceitar a proposta de transação penal. Tem-se muitas vezes uma intimidação sutil, fruto muitas vezes de uma impaciência das partes, em que a celeridade e a economia processual são os bens visados, e não a persecução com a verdade dos fatos. (PRADO, 2003, p. 196)

Os argumentos são os mais variados: ‘se você não aceitar a proposta de transação, virará Réu em processo, você quer isto?’; ‘se você não aceitar a proposta, gastará muito mais dinheiro com o advogado para fazer a defesa no processo’; ‘se você não aceitar a proposta de transação penal, poderá ser condenado, e isto constará em seus antecedentes criminais’. A partir de tais argumentos, o acusado vê-se quase numa obrigação de aceitar a proposta de transação penal, mesmo tendo a completa convicção de que é inocente.

“A declaração de vontade do autor do fato numa transação penal é mera ficção jurídica, posto que, pela ausência de oportunidade de defesa concreta, o que se tem é o evidente desequilíbrio entre as partes negociantes”(DE SOUZA, 2010, p. 85)

Somam-se a isto o fato da existência de audiências coletivas, conciliadores decidindo o fato, e o pior, abertura de processo e oferecimento de transação penal quando não há sequer indício de autoria o materialidade. O suposto autor do fato, acuado e sem o seu defensor, sente que haverá uma represália caso não aceite a proposta, e assim acaba assinando o termo e aceitando a proposta de transação penal. (COUTINHO, 2005, p. 8)

Extraem-se nitidamente dois aspectos: 1) existe uma pena sem um devido processo penal, contrariando frontalmente o princípio da necessidade; 2) Tal imposição à transação penal desfavorece os mais pobres, afinal, a possibilidade de pagar um, dois, três salários mínimos em sede de transação penal é, muitas vezes, muito mais tentadora que a incerteza de um processo penal, cujas defesas em caso de contratação de advogado privado possuem valor mais significativo que aquele.

Assim, o que era para ser uma conciliação se torna na prática uma imposição, uma penalidade. Não existe a possibilidade de discutir sobre a proposta de transação (assim como a pena). Em síntese, repete-se a situação que já foi exaustivamente trabalhada por autores como Franz Kafka (2005) e Francesco Carnelutti (2006): a partir do momento em que um processo penal, você já está, de maneira ou outra, condenado. E se o suposto autor do fato é tratado como Réu, a transação penal na prática não passa de uma forma de condenação, com a gravidade de ser realizada sem contraditória e ampla defesa.(DE SOUZA, 2012, p. 85)

Atua-se desta forma de maneira análoga aos contratos de adesão do direito cível: existe o contrato e estas são as cláusulas; não importa se tal contrato é desproporcional, ou se tais cláusulas são abusivas; se você precisa de tal serviço só resta recusar ou aceitar. A diferença é que, no direito cível o contrato de adesão está relacionado a direitos e obrigações individuais, ao passo que no direito penal, colocam-se em jogo as garantias constitucionais fundamentais que levaram séculos para ser respeitadas e protegidas pelo Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que o instituto da transação penal não tem conseguido corresponder na prática aos adjetivos a ele imputados no momento de sua criação. O caráter mitológico (na expressão de Paolo Grossi) criado nos entornos da Lei 9099/95, e mais especificamente do instituto da transação penal, caem por terra quando a realidade é analisada de maneira clara e objetiva.

A promessa de avanço e evolução trazida pela transação penal, proveniente de um sistema de barganha, herança de outros sistemas jurídicos, falhou na prática, pelos vários fatores demonstrados no presente artigo. E o pior, tal instituto adquiriu requintes de adesão, com o passar dos anos.

A impossibilidade de se discutir os termos da proposta de transação penal, a falta de isonomia entre a posição do suposto autor do fato e o ministério público, a própria ausência do magistrado e do representante do ministério público na audiência em diversas ocasiões, aliada ao descompasso entre a posição econômica do suposto autor do fato e a proposta, tornaram o instituto da transação penal um verdadeiro contrato de adesão, em que a pessoa vê duas opções: ou aceita, ou não.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Matheus de Andrade Branco

Advogado OAB/SC 34.585. Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Especialista em Direito Empresarial e dos Negócios pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI2013. Graduado em Direito pela UNIVALI 2012. Professor do Morgado Concursos


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