Do exercício do controle de constitucionalidade pelos tribunais de contas

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Resumo: O presente trabalho busca examinar sucintamente o instituto do controle constitucionalidade, especificamente com relação aos momentos e órgãos de realização desse controle, bem como o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade ou não do exercício dessa função pelos Tribunais de Contas.

Palavras-chave: controle de constitucionalidade; tribunal de contas; orgãos de controle.

Sumário: 1. Introdução – 2. Controle Jurisdicional e Controle Político – 3. Órgãos de Controle de Constitucionalidade – 3.1. Controle de Constitucionalidade Preventivo pelo Poder Legislativo – 3.2. Controle de Constitucionalidade Preventivo pelo Poder Executivo – 3.3. Controle de Constitucionalidade Preventivo pelo Poder Judiciário – 3.4. Controle de Constitucionalidade Repressivo pelo Poder Legislativo – 3.5. Controle de Constitucionalidade Repressivo pelo Poder Executivo – 3.6. Controle de Constitucionalidade Repressivo pelo Poder Judiciário – 4. Controle de Constitucionalidade pelo Tribunal de Contas – 4.1. Do Exercício do Controle Externo pelos Tribunais de Contas – 4.2. Natureza Jurídica das Decisões dos Tribunal de Contas – 4.3. Revisão dos Atos dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário – 4.4. Efeito Vinculatório das Decisões dos Tribunais de Contas para a Administração – 4.5. Controle de Constitucionalidade e Tribunal de Contas – 5. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, por influência norte-americana, adotou-se a teoria da revisão judicial dos atos legislativos, pela qual, em regra, compete ao Poder Judiciário aferir posteriormente a constitucionalidade dos atos normativos. Contudo, embora o controle de constitucionalidade seja, via de regra, jurisdicional, não somente o Poder Judiciário pode exercê-lo. A regra geral é que compete a órgão do Judiciário o exercício desse controle, mas isso não significa que os Poderes Executivo ou Legislativo – neste último inserido o Tribunal de Contas – não possam também realizá-lo. Trata-se exatamente do princípio da separação de poderes, conhecido mecanismo de freios e contrapesos ("checks ands balances system"), aplicável na esfera do controle de constitucionalidade.

Nesse sentido, considerando que, por atribuição constitucional, o Judiciário é a instância competente para o efetivo exercício do controle de constitucionalidade, porém de forma não exclusiva, indaga-se: e o Tribunal de Contas? Seria possível o exercício do controle de constitucionalidade pelas Cortes de Contas? Em que momento isso se faria? É, portanto, sobre este ponto que buscaremos discorrer, analisando as diferentes possibilidades previstas no ordenamento jurídico brasileiro para o exercício do controle de constitucionalidade pelos Órgãos e Poderes do Estado, bem como o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade ou não do exercício do controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas

2. CONTROLE JURISDICIONAL E CONTROLE POLÍTICO

Antes de verificar propriamente os diferentes órgãos e poderes no sistema jurídico brasileiro que possuem competência e legitimidade constitucional para exercerem  controle de constitucionalidade, é importante analisarmos qual a natureza do órgão que vai exercer o controle, isto é, que tipo de órgão exerce precipuamente o controle de constitucionalidade no ordenamento pátrio. A depender da natureza do órgão responsável pelo controle de constitucionalidade, a doutrina afirma a existência de duas espécies: (i) Controle Jurisdicional; (ii) Controle Político.

O controle político é aquele exercido por órgão sem natureza jurisdicional. Quer dizer, não é um controle exercido pelo Poder Judiciário. É exercido pelo Legislativo ou por um órgão específico criado para o exercício do controle de constitucionalidade. Na verdade, o controle político é tido por exclusão. Qualquer órgão que não tenha função jurisdicional e exerça controle de constitucionalidade, nesse caso esse controle será um controle político. Portanto, temos, de um lado, o controle jurisdicional, exercido por órgão do Poder Judiciário, e de outro lado, por exclusão, o controle político, exercido por qualquer órgão que não tenha natureza jurisdicional (Legislativo, Executivo, ou órgão específico de controle não integrante do Judiciário). E se o controle político é, por exclusão, o controle de constitucionalidade não exercido pelo Judiciário, logo, o controle jurisdicional, obviamente, é o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário.

A partir da existência dessas duas espécies de controle (jurisdicional e político), dependendo do tipo principal de controle que um país adota, poderemos ter três sistemas de controle de constitucionalidade: (i) Sistema Político; (ii) Sistema Jurisdicional; (iii) Sistema Misto. Quer dizer, o sistema de controle depende do tipo de controle (jurisdicional ou político) que, via de regra, é adotado pelo ordenamento nacional, não necessariamente de forma exclusiva. O sistema político é aquele que, em regra, adota o controle político, ou seja, é realizado por órgãos sem natureza jurisdicional (por exemplo, França). Já o sistema jurisdicional é aquele que, em regra, adota o controle jurisdicional, ou seja, é realizado tipicamente por órgãos do Poder Judiciário (por exemplo, Brasil, Estados Unidos). E ainda, há o sistema misto, que é aquele que conjuga o controle político com o controle jurisdicional (por exemplo, Suiça). Na verdade, existem duas espécies de controle (político e jurisdicional) e a partir desses modelos cada país estabelece o seu sistema de controle, que pode ser: sistema jurisdicional (preponderândia do controle jurisdicional), sistema político (preponderância do controle político) e sistema misto (conjugação do controle político e jurisdicional).

No Brasil, adotamos o sistema jurisdicional. Contudo, frise-se novamente que, quando se fala em sistema jurisdicional, não nos referimos à exclusividade do controle de constitucionalidade pelo Judiciário, mas que este o exerce em preponderância. Ou seja, o modelo constitucional conferiu a o poder, que muito mais é dever, de ser prioritariamente o guardião da Constituição. Todavia, ter um sistema jurisdicional não significa que tão somente o Poder Judiciário realiza o controle de constitucionalidade, mas que este tem a função precípua de realizá-lo, o que não significa que seja o único órgão incumbido de tal mister. Como veremos adiante, embora, no Brasil, o controle de constitucionalidade seja, via de regra, jurisdicional, não é apenas o Poder Judiciário que tem a incumbência do exercício dessa função. O que define o sistema de constitucionalidade não é a exclusividade de um tipo de controle apenas, mas a preponderância de um sobre o outro. De fato, a regra geral é que compete a órgão do Poder Judiciário o exercício do controle de constitucionalidade, por competência constitucionalmente estabelecida, mas isso não significa que os Poderes Executivo e Legislativo não possam realizá-lo (controle político), porque, de fato, estes o fazem em situações específicas, como se verá a frente.

Então, no sistema jurisdicional, como é o caso do Brasil, o controle de constitucionalidade é feito precipuamente pelo Judiciário (controle jurisdicional), contudo, apesar disso, temos em nosso ordenamento as possibilidades de controle feito também, de forma minoritária, pelo Executivo e Legislativo (controle político). Quer dizer, todos os três poderes atuam em controle de constitucionalidade, mas a atribuição constitucional precípua é do Judiciário, órgão que atua como guardião da Constituição. Isso ocorre porque o Judiciário é o órgão contramajoritário, independente, em tese, de pressões políticas, porque seus membros não foram eleitos pelo povo, podendo atuar em defesa da democracia material (garantia dos direitos das minorias). É justamente por isso que, no Brasil, temos o sistema jurisdiconal. Toda e qualquer lei que viole à Constituição pode ser objeto de impugnação. Cabe ao Judiciário, pois, a função precípua de guardião da Constituição, o que pressupõe a competência originária para o controle de constitucionalidade, embora não seja de forma exclusiva, sendo realizado em determinadas situações pelos Poderes Executivo e Legislativo.

3. ÓRGÃOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Já sabemos que, no Brasil, o controle de constitucionalidade é feito preponderantemente pelo Poder Judiciário. Trata-se do sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade. Contudo, vimos também que embora haja preponderância, não há exclusividade no exercício dessa função. Isso sginifica que não só o Poder Juddiciário, mas também o Poder Legislativo – neste inserido o Tribunal de Contas – e o Poder Executivo, podem realizar controle de constitucionalidade. Vejamos, então, os diferentes órgãos e momentos de realização do controle de constitucionalidade no ordenamento brasileiro, para, ao final, melhor analisarmos a possibilidade ou não dessa função pelas Cortes de Contas e o atual entendimento da Supremo Tribunal Federal.

3.1. Controle de Constitucionalidade Preventivo pelo Poder Legislativo

Preventivo é o contrle que ocorre durante o processo de elaboração do ato normativo. A lei ainda não se encontra pronta e acabada, isto é, o ato normativo não está efetivamente violando a Constituição, mas se ele continuar e se efetivar, causará uma lesão à Constituição. Para que isto seja evitado, antes mesmo dele ficar pronto é feito um controle (preventivo). Nesse sentido, é possível ao Poder Legislativo realizar preventivamente o controle de constitucionalidade sobre os seus próprios atos normativos. Tal controle é feito eminentemente pelas Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) durante a elaboração dos projetos legislativos. Todo órgão do Legislativo, seja ele Federal, Estadual ou Municipal, tem uma Comissão de Constituição e Justiça que faz uma análise preliminar do projeto de lei, antes dele ser votado.

Antes de ser encaminhada determinada proposta de lei, as Comissões de Constituição e Justiça analisam previamente se o projeto é constitucional para fins de encaminhamento à deliberação nas casas legislativas. Ora, se a função precípua do Legislativo é elaborar leis, obviamente, essas leis não podem ser feitas sem qualquer critério. Logo, é atividade ordinária do Legislativo realizar controle de constitucionalidade prévio dos projetos que tramitam em suas Casas. Isso não faz com que seja a hipótese padrão de controle de constitucionalidade, porque o modelo constitucional, por adoção da teoria da revisão judicial dos atos legislativos, é o controle de constitucionalidade repressivo feito pelo Judiciário. Mas, a rigor, em se tratando de controle de constitucionalidade preventivo, este é feito primordialmente pelo Poder Legislativo, realizado sobretudo pelas Comissões de Constituição e Justiça.

3.2. Controle de Constitucionalidade Preventivo pelo Poder Executivo

O Chefe do Executivo, ao receber um projeto de lei, poderá sancioná-lo ou vetá-lo. Se há veto, estará havendo controle preventivo. Na verdade, o Chefe do Executivo veta o projeto de lei, e não a lei, porque o projeto de lei só se torna lei com a sanção (aquiescência) ou eventual derrubada do veto. Assim, o controle de constitucionalidade feito pelo Poder Executivo por meio do veto, de fato, trata-se de controle preventivo. Vale ressaltar que existe o veto político e o veto jurídico. O veto é político quando o Chefe do Executivo entende que o projeto é contrário ao interesse público. O veto é jurídico quando se veta o projeto não mais por ser contrário ao interesse público, mas por entender que o projeto é inconstitucional, desrespeita e vola a Costituição (veto jurídico).

 Nos termos do art. 66, §1º, da CF/88, estabelece a Carta Magna que se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional (veto jurídico) ou contrário ao interesse público (veto político), vetá-lo-á total ou parcialmente. Assim, o Chefe do Executivo pode vetar um projeto de lei em duas hipóteses: quando entender que o projeto de lei é inconstitucional (veto jurídico) ou quando entender que é contrário ao interesse público (veto político). Somente o veto jurídico é, de fato, o controle de constitucionalidade preventivo, o veto político não é controle de constitucionalidade, porque nesse caso não há afronta direta à Constituição.

3.3. Controle de Constitucionalidade Preventivo pelo Poder Judiciário

Em regra, o controle de constitucionalidade cabe ao Poder Judiciário, que o fará de forma repressiva (teoria da revisão judicial dos atos legislativos). Contudo, existe uma hipótese de controle preventivo realizado pelo Judiciário. Trata-se da impetração de mandado de segurança por parlamentar para fazer valer o seu direito-função ao processo legislativo juridicamente regular. É o que acontece na hipótese de Emendas Constitucionais que violam cláusulas pétreas. Trata-se, nesse caso, nos termos do entendimento da Corte Suprema, da chamada inconstitucionalidade chapada, ou flagrante. Se um parlamentar visualiza uma emenda tendente a violar cláusulas pétreas, será hipótese, desde já, de controle de constitucionalidade. Isso decorre da análise da redação do art. 60, §4º, CF/88, o qual estabelece que: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir…” Ou seja, pelo texto constitucional, obsta-se, até mesmo, a simples deliberação legislativa ofensiva à cláusula pétrea, tratando-se de controle prévio.

O remédio constitucional adequado a esta situação é o mandado de segurança para impedir a votação do projeto. Tal direito, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, é subjetivo dos parlamentares, não cabendo a qualquer do povo fazê-lo. Trata-se tão somente de direito público subjetivo do parlamentar (direito-função) à observância do processo legislativo constitucional regular. A possibilidade de controle decorre da violação concreta de um direito em processo constitucional subjetivo. O que está em jogo é a proteção do direito subjetivo do parlamentar e não a supremacia constitucional. Por isso só aquele pode invocar o controle preventivo perante ao Judiciário. E, obviamente, este controle preventivo não impede posterior controle repressivo. Aqui combate-se só o processo legislativo, nada impede que a emenda seja depois impugnada em controle repressivo.

3.4. Controle de Constitucionalidade Repressivo pelo Poder Legislativo

Repressivo é o controle que ocorre após a conclusão do ato normativo, estando este pronto e acabado. A lei, agora, não está apenas na iminência de violar a Constituição, mas já efetivamente causa uma lesão à Constituição. Enquanto no controle preventivo o objetivo é evitar que o ato normativo viole a Constiuição antes mesmo dele ficar pronto, no controle repressivo, por sua vez, o objetivo é expurgar o ato que está violando a Constituição. Em regra, como visto, o Poder Legislativo exerce controle de constitucionalidade em momento preventivo, por meio das Comissões de Constituição e Justiça, mas é possível também fazê-lo em momento posterior.

A primeira possibilidade é no caso de rejeição de medida provisória. Quando este instrumnto normativo chega no Legislativo, poderá haver a conversão em lei ou sua rejeição. A medida provisória, vale notar, embora não seja lei, tem força de lei. Isto é, com o nascimento da medida provisória já houve efetivo ingresso no ordenamento jurídico de espécie normativa pronta e acaba, como se lei fosse. Logo, a rejeição de medida provisória é hipótese de controle repressivo de constitucionalidade realizado pelo poder Legislativo. Além disso, dispõe o art. 49, V, da CF/88 que compete ao Congresso Nacional sustar os atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. A segunda possibilidade de controle repressivo pelo Legislativo, então, ocorre quando este suspende ato normativo do Executivo que exorbitar os limites: (a) do poder regulamentar (art. 84, IV, CF/88); (b) da delegação legislativa (art. 68, CF/88). Por fim, uma terceira possibilidade refere-se ao controle de constitucionalidade exercido pelos Tribunais de Contas (Súmula n°. 347 do STF), órgão que atua em auxílio ao Legislativo. Sobre esse ponto, veremos em tópico separado adiante, sobretudo o atual endentimento da Suprema Corte no que tange à evolução do seu entendimento presente na Súmula n°. 347 do STF.

3.5. Controle de Constitucionalidade Repressivo pelo Poder Executivo

Já se sabe que o Executivo pode realizar controle prévio de constitucionalidade por meio do veto jurídico. Contudo, é possível também a esta instância de Poder, em hipótese excepcionalíssima, realizar controle de constitucionalidade repressivo. Trata-se de hipótese prevista pela jurisprudência da Suprema Corte, referindo-se ao exercício do controle de constitucionalidade pelo Executivo através da não aplicação por este de lei que repute maculada de incostitucionalidade. Nesse caso, a lei ficaria ineficaz por opção do Executivo, que tem a possibilidade de descumprir um ato legislativo quando entender inconstitucional. Nesse caso, não temos previsão constitucional, trata-se de construção jurisprudencial que, embora seja bastante polêmica, tem sido reconhecida pelos tribunais. Assim, seria possível admitir ao Poder Executivo, de forma excepcional e motivadamente, o exercício do controle de constitucionalidade pela não aplicação da lei. De fato, a constitucionalidade das leis decorre de uma presunção relativa, nao é absoluta. Enquanto o Judiciário não declarar que a lei é constitucional, caberia ao Executivo recusar o seu cumprimento.

Contudo, a hipótese ainda é muito controversa e existem debates na doutrina sobre essa possibilidade não ser mais aceita após a Constituição Federal de 1988. Há autores que alegam que, antes da CF/88, havia apenas um legitimado que poderia propor ação de inconstitucionalidade no STF, o Procurador-Geral da República, nesse caso se justificava que o Chefe do Executivo deixasse de cumprir um ato normativo, já que ele não dispunha de nenhum instrumento para questionar a sua inconstitucionalidade. Mas depois de 1988 essa legitimação foi ampliada para abranger também o Chefe do Executivo, que igualmetne pode propor ADI, ADC e ADPF, não se justificando mais eventual descumprimento de lei sob o argumento de que é inconstitucional. Porém, o STF tem entendimentos posteriores a 1988 admitindo essa possibilidade: "Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua chefia (…), podem tão só determinar aos seus órgãos subrodinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais” (ADI MC221/DF, j. 29.03.90, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves). A rigor, nos enfrentamentos da questão após à CF/88, a questão principal não foi discutida, apenas deliberada incidentalmente. Mas apesar da polêmica, reconhece-se a recusa ao cumprimento da lei como possibilidade excepcionalíssimo de controle repressivo pelo Executivo.

3.6. Controle de Constitucionalidade Repressivo pelo Poder Judiciário

A regra é o controle de constitucionalidade feito pelo Poder Judiciário e feito em momento posterior. O controle de constitucionalidade no Brasil adota a teoria da revisão judicial dos atos legislativos. Toda e qualquer lei que viole à Constituição pode, em tese, ser objeto de impugnação ao Judiciário, cabendo a este a função precípua de guardião da Constituição, o que pressupõe a competência originária para o controle de constitucionalidade. Aqui, portanto, está a maioria esmagadora os casos de controle de constitucionalidade, sendo atividade corriqueira e ordinária do judiciário a realização desse controle, que via de regra é feito de forma repressiva, até mesmo pelo princípio da Separação dos Poderes, não cabendo ao Judiciário intervir em projeto de lei ainda não pronto e acabado, do contrário estaria invadindo a esfera de atuação do Legislativo. A regra, então, é que o controle seja jurisdicional (feito pelo judiciário) e repressivo (não cabe intervenção judicial antes da lei estar pronta). É sobre esta atividade que se desenvolve toda a teoria geral do controle de constitucionalidade, que ora não nos alongamos por não ser o objeto deste presente ensaio.

4. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PELO TRIBUNAL DE CONTAS

4.1. Do Exercício do Controle Externo pelos Tribunais de Contas

A origem dos orçamentos públicos está relacionada ao desenvolvimento da democracia, opondo-se ao Estado antigo, em que o monarca considerava-se soberano e detentor do patrimônio originário da coletividade. A natureza orçamentária, pois, consiste em uma autorização do povo para que seus representantes eleitos possam, em seu nome, despender os recursos públicos, eis que os cidadãos são os verdadeiros proprietários do dinheiro público. Mas não basta tão somente autorizar os gastos, é necessário o acompanhamento desses dispêndios para fins de aferir se a aplicação dos recursos está condizente com o que foi autorizado, bem como se está em consonância com a moralidade administrativa, tudo para se alcançar uma gestão eficiente dos recursos públicos. Para tanto, faz-se necessário que exista uma instituição independente, com a atribuição de fiscalizar a atividade financeira do Estado, aferindo como os recursos da coletividade estão sendo aplicados. Chegamos, então, ao que chamamos de controle externo, que é a fiscalização da gestão do dinheiro público por um ente externo àquele que realiza o dispêndio. É sobre o manejo e aplicação dos recursos e, em ultima instância, sobre a eficiência na gestão publica, que temos o objeto do controle externo, função que no Brasil é de titularidade do Legislativo, exercida com o auxílio do Tribunal de Contas, nos termos do art. 71 da Constituição Federal.

A doutrina costuma identificar dois sistemas principais de controle externo, embora cada país apresente peculiaridades resultantes de sua história, tradições e características políticas. São, basicamente, dois modelos existentes: (a) Tribunais de Contas (Corte de Contas); (b) Auditorias-Gerais (Controladorias). Ambos, tanto os Tribunais de Contas como as Controladorias, são órgãos integrados ao aparelho do Estado, em geral com previsão constitucional, tratando-se de estruturas com elevado grau de independência, possuindo a função precípua do exercício do controle externo. A dierença é que, enquanto os Tribunais são órgãos colegiados de julgamento, com atribuições sancionarórias, e sua gênese se relacione à legalidade da gestão publica, as Controladorias, ao contrário, são órgãos unipessoais, tendo uma função mais ligada ao assessoramento, orientando e corrigindo erros, buscando a eficiência nos resultados, sem competência para julgamento das contas e nem para aplicação de sanções.

No Brasil, adotou-se o sistema dos Tribunais de Contas. Suas características marcantes são o caráter colegiado de suas decisões e o seu poder coercitivo de impor sanções aos administradores com contas julgadas irregulares. Ao revestir-se de caráter jurisdicional (julgamento das contas), o controle exercido pelos Tribunais sempre atribui maior ênfase ao processo, tendo procedimentos de fiscalização mais acentuadamente formais e legalistas. Contudo, vale ressaltar que o modelo dos Tribunais de Contas, cuja origem é marcada pelo controle da legalidade estrita, evoluiu para abranger também novos conceitos de controle, cuja base se assenta no sistema de Controladorias. No início, o controle exercido pelos Tribunais de Contas era, de fato, meramente formalístico, enfatizando apenas aspectos atinentes à legalidade dos atos públicos, e o sistema de Controladorias, por sua vez, enfatizava aspectos atinentes ao desempenho e resultados da gestão. Mas, atualmente, é praticamente inconcebível a fiscalização de um ato administrativo ater-se apenas no julgamento de legalidade. Os Tribunais de Contas procuram, agora, incorporar as novas técnicas de Auditoria que permitam a apreciação das contas de forma mais abrangente, incluindo também aspectos atinentes à eficiência da gestão, superando a mera análise formal. Esse caminho vem sendo adotado pelo Brasil.

De fato, o controle não representa um fim em si mesmo, mas uma parcela imprescindível de um mecanismo regular que deve assinalar oportunamente os desvios e irregularidades na aplicação dos recursos públicos. Como corolário do Estado Democratico de Direito, é o controle externo um instrumento que impede o abuso do poder, fazendo com que as autoridades e os agente administrativos pautem a sua atuação em defesa do interesse coletivo, por meio de uma fiscalização orientadora, corretiva e até punitiva. O sistema de Tribunais de Contas modernamente fiscaliza o gasto público não só pelo aspecto da legalidade, mas também adentra na legitimidade, economicidade e eficiência, evoluindo para assumir um papel também pedagógico diante do gestor. É o que acontece hoje no Brasil a partir da Carta Costitucional de 1988, que confere ao Tribunal de Contas um grau de relevância e amplitude de competências sem paralelo, combinando atribuições repressivas, típico das Cortes judicantes, bem como instrumentos preventivos e pedagógicos, típicos das Auditorias-Gerais, caracterizando-se como um modelo híbrido. Dentro desse rol de atribuições das Cortes de Contas, discute-se atualmente sobre a possibilidade ou não do exercício de controle de constitucionalidade. Para tanto, necessário entender o contexto em que se inserem as Cortes de Contas no modelo constitucional brasileiro para, então, bem podermos concluir sobre o tema.

4.2. Natureza Jurídica das Decisões dos Tribunais de Contas

Não é de hoje o fervoroso debate acerca da natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas. Possuem natureza judicante ou administrativa? Esclareça-se, de início, que uma decisão judicante não necessariamente é aquela originária do Poder Judiciário, mas sim, é aquela que possui a capacidade de dizer definitivamente o direito, fazer coisa julgada. Nesse ponto, relembremos, das lições de direito administrativo, que existem dois sistemas de controle dos atos da Administração: (a) Sistema do Contencioso Administrativo: preconiza que, praticado um ato administrativo, o controle do referido ato poderá ser feito pela própria Administração, podendo um órgão administrativo ter competência para resolver em definitivo uma determinada questão sem que as partes necessitem recorrer ao Judiciário; (b) Sistema da Jurisdição Única: preconiza que em qualquer situação sempre caberá ao Poder Judiciário a possibilidade de dar a palavra final e fazer coisa julgada, sendo as decisões da Administração revisíveis pelo Judiciário, o que significa que apesar da convivência harmoniosa com colegiados administrativos, estes não têm a última palavra em termos decisórios, cabendo sempre ao Judiciário fazê-lo.

Observe-se que em todos dois sistemas existe a possibilidade tanto de um órgão administrativo como um órgão do judiciário exercerem a função de julgamento, a diferença é que no Sistema de Jurisdição Única apenas o Poder Judiciário tem a função de dizer o direito definitivamente (decisão com efeito judicante), enquanto no Sistema de Contencioso Administrativo é possível o julgamento pela Administração também cumprir a mesma função e fazer coisa julgada. O Brasil adota o Sistema de Jurisdição Única. Somente ao Poder Judiciário, pelo princípio da inafastabilidade da justiça (CF/88, art 5°, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), caberá dizer definitivamente sobre o direito, sendo as decisões aministrativas sempre passíveis de revisão judicial. Ou seja, os órgãos administrativos só produzem julgamentos com natureza administrativa, nunca decisões com efeito judicante, sendo estas privativas do Poder Judiciário (Sistema de Jurisdição Única).

Isso responde a pergunta inicial: qual a natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas: administrativa ou judicante? Nos termos do ordenamento jurídico brasileiro e da ordem constitucional em vigor, que adota o sistema de jurísdição única, temos que as decisões dos Tribunais de Contas possuem natureza administrativa. Mas o tema não é pacífico. Existe parcela minoritária da doutrina que defende a força judicante da deliberação dos Tribunais de Contas. Primeiro, porque o art. 71, II, CF/88, estabelece que cabe à Corte de Contas julgar as contas dos administradores e responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. Segundo, porque o art. 73, §3º, CF/88, dispõe que os Ministros TCU terão as mesmas prerrogativas e impedimentos dos Ministros do STJ, isto é, o texto constitucional assegura à Corte de Contas os mesmos privilégios de independência do Poder Judiciário, exercendo, no que couber, as atribuições do art. 96 da CF/88, que estatui normas atitentes à organização do Poder Judiciário. Terceiro, porque o próprio caput do art. 73 fala em jurisdição quando se reporta ao Tribunal de Contas da União, dispondo que a Corte terá quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional.

Não obstante, o sistema jurídico brasileiro é claro, nada excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF/88). A doutrina majoritária e a jurisprudência uníssona conferem aos julgamentos dos Tribunais de Contas natureza administrativa. O Brasil adotou o sistema de jurisdição única, também chamado de monopólio da tutela jurisdicional pelo Poder Judiciário, de sorte que as decisões administrativas das Cortes de Contas, enquanto atos administrativos, sujeitam-se necessariamente ao controle jurisdicional pelo Poder Judiciário, a quem compete, com exclusividade, resolver definitivamente os conflitos e fazer coisa julgada material. Assim, pelo princípio da inafastabilidade do judiciário, o entendimento dominante é o de que inexiste no Brasil o chamado sistema do contencioso administrativo. As decisões das Cortes de Contas, portanto, possuem natureza administrativa.

4.3. Revisão dos Atos dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário

Já sabemos que o Tribunal de Contas é um órgão cujas decisões não possuem natureza judicante. Por força do sistema de jurisdição única adotado no Brasil apenas o Judiciário pode fazer coisa julgada, dizer definitivamente o direito. E, de fato, a Corte de Contas, no modelo brasileiro, não integra o Poder Judiciário. Se ainda existe discussão quanto ao seu ingresso ou não na estrutura do Legislativo (prevalecendo o entendimento nesse sentido), quanto à sua não inclusão no Poder Judiciário não há dúvidas. Embora a Corte de Contas tenha o nome de "Tribunal" (porque se trata de órgão colegiado), fale-se em jurisdição (porque julga as contas dos administradores), e seus membros equiparem-se aos do judiciário (Ministros do TCU possuem as mesmas prerrogativas dos Ministros do STJ; auditores possuem as mesmas prerrogativas dos juizes do TRF; aplicando-se o princípio da simetria na esfera estadual), trata-se de instancia cujas decisões revestem-se de natureza administrativa. Por isso, seus atos são passíveis de controle na via judicial. Temos, então, a revisão dos atos do Tribunal de Contas feita pelo Judiciário, sempre que demandado para tanto.

Mas de que forma se dá esse controle? Sabemos que o controle feito pelo Judiciário nos atos da Administração possui reservas quanto as mérito do administrador (conveniência e oportunidade), inserindo-se precipuamente no âmbito da legalidade. Contudo, sabe-se, também, que hoje encontra-se superado o debate acerca da possibilidade ou não do controle judicial atingir o mérito. De fato, o princípio da legalidade deixou de ser visto no seu aspecto puramente formal para ser encarado também no plano material, sendo possível ao judiciário, com ponderações, adentrar no mérito, sobretudo a partir dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Mas atenção: além do mérito administrativo, que se liga à conveniência e oportunidade do gestor, há também o mérito da decisão administrativa. Qualquer decisão, judicial ou administrativa, tem dois aspectos: (i) forma (regularidade processual); (ii) mérito (essência da decisão, direito discutido). Nas decisões administrativas, pode o Judiciário rever tanto a forma quanto o mérito da decisão para reformar o que foi decidido em sede administrativa. Logo, no que diz respeito a esse mérito, isto é, o mérito de um pleito administrativo (o direito do interessado), o Judiciário pode reapreciar. Nesse ponto, o Judiciário não entra no mérito administrativo (conveniência e oportunidade), mas entra no mérito da decisão administrativa (direito pleiteado, essência do ato). Ocorre que, exatamente nesse ponto, reside uma diferença crucial entre a revisão dos atos da Administração, e a revisão das decisões do Tribunal de Contas, embora ambas tenham natureza administrativa. O controle jurisdicional é diferente em cada caso.

Ao contrário do que ocorre como regra nas decisões administrativas, no que diz respeito às decisões das Cortes de Contas o seu mérito é insuscetível de discussão. Compete ao Judiciário apenas verificar se foi observado o devido processo legal e se não houve violação de direito individual. O Poder Judiciário não pode entrar no mérito (conteúdo) da decisão do Tribunal de Contas e, por exemplo, julgar regulares contas que foram tidas por irregulares pela Corte de Contas, ou o inverso. Não há reforma ou revisão pelo Judiciário do mérito da decisão do Tribunal de Contas, o que pode haver é anulação por ilegalidade ou desrespeito ao devido processo legal. Logo, o Judiciário não apreciará o mérito, mas a legalidade e a formalidade das decisões dos Tribunais de Contas.

É que, apesar de ter natureza administrativa, o Tribunal de Contas é o órgão ao qual foi outorgado competência constitucional para julgar as contas, aplicar sanções, verificar legalidade da concessão de aposentadorias, reformas e pensões, dentre outras inúmeras competências listadas no art. 71 da CF/88. Para estas competências, o Tribunal de Contas é o órgão tecnicamente competente, não cabendo revisão do mérito da decisão pelo Judiciário. Se a decisão se divide em forma (regularidade processual) e mérito (direito pleiteado), apenas o primeiro, no que tange às decisões das Cortes de Contas, pode ser revisto pelo Judiciário. Por isso é que uma decisão da Corte de Contas pode até ser anulada, mas nunca reformada judicialmente. Isso ocorre porque, enquanto a decisão normal da Administração é um ato de natureza administrativa pura, a decisão do Tribunal de Contas, por sua vez, embora seja também administrativa e não tenha natureza judicante (não faz coisa julgada), possui um certo viés jurisdicional, porque a Corte julga as contas, daí a razão de se falar em jurisdição. Essa competência de julgar as contas é atribuída pela Constituição, nenhuma outra instância pode usurpar tal atribuição (art. 71, II, CF/88).

Portanto, somente o Tribunal de Contas é competente para entrar no mérito (análise técnica) de suas decisões, resolver sobre regularidade ou irregularidade de contas, seus desdobramentos decorrentes, bem como as outras matérias que lhe foram constitucionalmente outorgadas, não entrando nesta seara o Judiciário. Todo esse enfoque, obviamente, é importante quando se analisa a possibilidade ou não do Tribunal de Contas proceder à eventual controle de constitucionalidade no exercício de suas funções. Se nas decisões e atos administrativos puros da Administração cabe ao Judiciário revisar a forma (regularidade processual) e o mérito (essência da decisão), nas decisões dos Tribunais de Contas o Judiciário analisa somente o primeiro. Não pode o Judiciário entrar no mérito da decisão e exercer controle técnico acerca da matéria constitucionalmente sujeita ao crivo privativo da Corte de Contas. O mérito da decisão do Tribunal de Contas só pode ser reformado pelo próprio Tribunal, mais ninguém. Em síntese, o Poder Judiciário poderá apreciar somente o "error in procedendo", jamais o "error in judicando". O Tribunal de Contas, tal como o Poder Judiciário, julga na matéria de sua competência (embora no primeiro caso a decisão tenha natureza administrativa, ao contrário deste último, cuja decisão reveste-se de força jurisdicional), o mérito não pode ser revisto pelo Poder Judiciário, que só tem a força da revisibilidade das decisões do Tribunal de Contas em um plano meramente formal, como garantia ao devido processo legal e os direitos e garantias individuais. O mérito da decisão, nesse plano, é insindicável pelo Poder Judiciário.

4.4. Efeito Vinculatório das Decisões dos Tribunais de Contas para a Administração

Outro importante destaque nesta presente análise diz respeito ao caráter vinculatório das deliberações das Cortes de Contas em relação à Administração Pública. Indaga-se: os julgamentos do Tribunal de Contas vinculam a Administração ou esta pode rever tais atos? Em outros termos, pode um Tribunal proferir decisões não judicantes, de natureza administrativa, e ainda assim vincular o Executivo? De fato, as decisões das Cortes de Contas, dentro de suas atribuições constitucionais, possuem caráter impositivo e vinculante para a Administração. Não se pode colocar a decisão proferia pelo Tribunal de Contas no mesmo nível que uma decisão proferida por órgão integrante da Administração Pública. Embora ambos tenham natureza administrativa, não faria o menor sentido que a Administração pudesse anular os atos dos Tribunais de Contas, seja pelo principio da separação de Poderes, seja porque os atos controlados não têm a mesma força que os atos de controle, caso contrário o órgão controlado estaria revisando a instância fiscalizadora.

Podemos afirmar, então, que a decisão do Tribunal de Contas, se não se iguala à decisão jurisdicional, porque está sujeita também ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário, também não se identifica com a função puramente administrativa. Ela se coloca a meio caminho entre uma e outra. Isto se deve ao fato de que os julgamentos dos Tribunais de Contas tem assento constitucional e se sobrepõem à decisão das autoridades administrativas. É órgão especificamente criado para tal mister, com competência outorgada pela Lei Maior para a fiscalização das contas públicas, cuja decisão, no que se refere à matéria de sua competência, vincula o restante da Administração, qualquer que seja o nível em que se insiram na hierarquia do aparelhamento estatal, mesmo no nível máximo da chefia do Poder Executivo. Desse modo, se, por um lado, as decisões dos Tribunais de Contas, iniludivelmente administrativas, são suscetíveis de apreciação pelo Judiciário, podendo vir a ser anuladas por este, por outro lado, o mesmo não pode fazer a Administração, posto que o Tribunal de Contas, órgão constitucionalmente estabelecido para vigiar a execução e a boa aplicação dos recursos públicos, é sobranceiro à própria Administração, que fica vinculada ao julgamento da Corte de Contas, não podendo invalidar seus atos.

Por tal motivo, alguns doutrinadores afirmam que as decisões dos Tribunais de Contas constituiriam-se na chamada coisa julgada administrativa (decisão tomada na via administrativa que não pode sofrer alteração nessa mesma instancia, embora possa sê-lo na via judicial). Ou seja, sob o prisma da imutabilidade da declaração contida na decisão das Cortes de Contas, seus julgamentos são irretratáveis pela Administração, somente podendo fazê-lo o próprio Tribunal de Contas. E, além disso, são insuscetíveis de rediscussão pelo Judiciário quanto ao conteúdo da declaração que emitem. Obviamente, não se reconhece a coisa julgada em sua plenitude, porque a decisão do Tribunal de Contas, mesmo não podendo ser revista pela Administração, não desafia ao Judiciário. De todo modo, embora o Tribunal de Contas seja um tribunal administrativo, cuja natureza jurídica das decisões não se reveste de caráter judicante e, consequentemente, sujeita-se ao controle de legalidade por parte do Judiciário, sua decisão vincula a Administração, isto é, seus julgamentos possuem natureza administrativa, porém, com efeito vinculatório para a Administração Pública.

“MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. APOSENTADORIA. ILEGALIDADE. REGISTRO. NEGATIVA. AUTORIDADE COATORA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. I – "A aposentadoria é ato administrativo sujeito ao controle do Tribunal de Contas, que detém competência constitucional para examinar a legalidade do ato e recusar o registro quando lhe faltar base legal" (RE nº 197227-1/ES, Pleno, Rel. Ministro ILMAR GALVÃO, DJ de 07/02/97). II – O Tribunal de Contas da União é parte legítima para figurar no pólo passivo do mandado de segurança, quando a decisão impugnada revestir-se de caráter impositivo. Precedentes do Colendo Supremo Tribunal Federal. III – A decisão do Tribunal de Contas que, dentro de suas atribuições constitucionais (art. 71, III, CF), julga ilegal a concessão de aposentadoria, negando-lhe o registro, possui caráter impositivo e vinculante para a Administração. IV – Não detendo a autoridade federal impetrada poderes para reformar decisão emanada do TCU, não é parte legítima para figurar no pólo passivo da ação mandamental que se volta contra aquela decisão. Recurso não conhecido.” (REsp 464633/SE, Ministro FELIX FISCHER, T5 – QUINTA TURMA, DJ 31/03/2003).

4.5. Controle de Constitucionalidade e Tribunal de Contas

Diante de tudo o que foi exposto, podemos concluir que os Tribunais de Contas colocam-se em posição de relevo no ordenamento pátrio: possuem competência constitucional privativa no julgamento de contas; suas decisões revestem-se de caráter impositivo e vinculante para a Administração; seus membros são equiparáveis em prerrogativas aos membros do judiciário; o conteúdo de seus julgamentos não pode ser alterado pelo pelo Judiciário, mas somente anulado, dentre outras características tão marcantes que conferem às Cortes de Contas um status de relevo. Dentro desse peculiar contexto de controle e a atual e crescente importância dentro do ordenamento pátrio dos Tribunais de Contas, sobretudo com atuação não limitada aos critérios de legalidade, mas também adentrando na legitimidade, economicidade e eficiência dos atos de gestão, indaga-se: no exercício da função constitucional de controle e julgamento de contas pelos Tribunais de Contas, deparando-se estes com eventual inconstitucionalidade de lei no caso concreto, seria possível o exercício do controle de constitucionalidade pelas Cortes de Contas?

Nesse ponto, reconhecemos que o Supremo Tribunal Federal autoriza expressamente essa possibilidade, através da sua Súmula n° 347, atualmente em vigor, cujo teor é cristalino:

“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.

Dessa forma, a princípio, no exercício do controle externo da Administração, pode o Tribunal de Contas exercer aferição de constitucionalidade. Obviamente, trata-se de declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo "in concreto", jamais em abstrato, caso contrário estaria havendo usurpação da competência do próprio Supreo Tribunal Federal. Contudo, há que se ressalvar que o tema atualmente tem gerado certa polêmica, sobretudo porque o STF, em várias decisões monocráticas em sede de liminar, vem suscitando a necessidade de revisão da referida Súmula, porque exarada em momento anterior à CF/88. Nesse sentido, a Corte Maior conferiu interpretação conforme a essa Súmula para dizer que o Tribunal de Contas só pode declarar a inconstitucionalidade no caso específico de ato do poder público, e não de uma lei em abstrato, caso contrário estaria havendo usurpação de competência do próprio STF, conferido por mandamento constitucional. Ou seja, enquanto a Súmula n°. 347 do STF (ainda em vigor) diz que o Tribunal de Contas pode exercer controle de constitucionalidade de “lei ou ato normativo” do poder público, a jurisprudência da Corte caminha no sentido de restringir essa possibilidade apenas para aferição de constitucionalidade de “atos” do poder público. Isto é, seria possível o controle de constitucionalidade pelas Cortes de Contas, mas somente controle de ato ou contrato administrativo no exercício da fiscalização, e não controle da lei em abstrato. Essa é a tendência atual da jurisprudência do STF, embora inalterado o teor da sua Súmula n°. 347.

Nesse sentido, o escopo de atuação do Tribunal de Contas, para fins de controle de constitucionalidade, ficaria adstrito à análise dos atos e contratos emanados pela Administração, e não à lei que se aplica ao caso. Hoje, parece não mais se admitir como legítimo o afastamento da aplicação de lei, por parte de órgãos não-jurisdicionais, que ainda não foi considerada inconstitucional pelo Judiciário. Logo, o Tribunal de Contas poderia declarar a inconstitucionalidade de atos do poder público, mas não assim fazê-lo em relação a uma lei. As vozes nesse sentido ainda não estão uníssonas, havendo relevantes posicionamentos, sobretudo na doutrina, nos dois sentidos, mas essa é o caminho verificado nos dias atuais no âmbito da Corte Suprema. A respeito, veja-se o voto singular do Min. Gilmar Mendes em decisão monocrática no MS 25.888, que discutia a declaração de inconstitucionalidade do TCU no procedimento simplificado de licitação da Petrobrás:

“Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da União, do art. 67 da Lei n° 9.478/97, e do Decreto n° 2.745/98, obrigando a Petrobrás, consequentemente, a cumprir as exigências da Lei n° 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177). Não me impressiona o teor da Súmula nº 347 desta Corte, segundo o qual ‘o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público’. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988″. (STF, MS 25.888 MC / DF, Decisão do Ministro Relator – Monocrática, Rel . Min. Gilmar Mendes, DJ 29/03/2006.)

Portanto, em suma: a Súmula 347 do STF, atualmente em vigor, confere o poder para o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público, contudo, de acordo com a tendência da jurisprudência do STF, o Tribunal de Contas pode reconhecer a inconstitucionalidade de um ato do poder público no caso concreto, mas não a inconstitucionalidade de uma lei, embora não seja esta a redação expressa da Súmula n°. 347 do STF. Enquanto o referido verbete sumular diz que o Tribunal de Contas pode exercer controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo (e seu texto continua em vigor, não foi revogado ou alterado), a jurisprudência do STF caminha no sentido de restringir essa possibilidade apenas para aferição de constitucionalidade de atos do poder público (e não de lei) pelo Tribunal de Contas. A matéria ainda não está pacificada, mas esse é o caminho pelo qual percorre a jurisprudência atual da Corte Suprema.

5. CONCLUSÃO

Diante do exposto, buscou-se examinar suscintamente o instituto do controle constitucionalidade, especificamente com relação aos momentos e órgãos de realização desse controle, bem como o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade ou não do exercício dessa função pelos Tribunais de Contas. Embora no Brasil o controle de constitucionalidade seja, via de regra, jurisdicional (teoria da revisão judicial dos atos legislativos), não somente o Poder Judiciário pode exercê-lo. Nesse enfoque, cabe ao Legislativo e Executivo, por mandamento constitucional, a possibilidade de controle, excepcionalemente. Dentro desse contexto, o Supremo Tribunal Federal autoriza expressamente a possibilidade de controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas, à luz da Súmula n° 347, atualmente em vigor. Contudo, tal posicionamento vem sendo reformado pela Corte Maior. Hoje, a jurisprudência do Supremo caminha no sentido de restringir a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade pelos Tribunais de Contas, apontando para uma futura revisão da Súmula n° 347 do STF.

 

Referências
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª ed. Saraiva, 2010.
BULLOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Saraiva, 2011.
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Juspodvum, 2012.
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. 37ª ed. Saraiva, 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Saraiva, 2011.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. Atlas, 2011.
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. Malheiros, 2011.
PASCOAL, Valdecir. Direito Financeiro e Controle Externo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
PISCITELLI, Tathiane. Direito Financeiro Esquematizado. 1ª ed. São Paulo: Método, 2011.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

Informações Sobre o Autor

Francisco Gilney Bezerra de Carvalho Ferreira

Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União.
Pós-Graduado em Direito Público


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